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Um argumento moral para o ateísmo
17 de July de 2011 by Gilmar Santos
Autor: Raymond D. Bradley
Tradução: Gilmar Pereira dos Santos
[Apresentado na University of Western Washington em 27 de maio de 1999, e -- numa versão revisada -- na University of Auckland em 29 de Setembro de 1999. Raymond D. Bradley é professor emérito de Filosofia na Simon Fraser University, e atualmente vive na Nova Zelândia.]
Preâmbulo para filósofos
O argumento que estou prestes a apresentar é direcionado principalmente a um público leigo, sem formação filosófica. Filósofos profissionalmente treinados podem questionar o fato de eu dizer pouco sobre o Deus da tradição filosófica e bastante sobre o Deus do púlpito e dos bancos de igreja.
Ofereço-lhes duas breves explicações.
Primeira: há um amplo precedente para o que estou fazendo. Sócrates, por exemplo, examinou as crenças religiosas de seus contemporâneos – especialmente a crença de que devemos fazer o que os deuses nos ordenam — e demonstrou-lhes ser tanto mal fundamentada quanto conceitualmente confusa. Desejo seguir suas pegadas, mas sem compartilhar seu destino. Uma taça de vinho, não de veneno, seria a recompensa que eu escolheria.
Portanto, como Sócrates, eu me posiciono contra o Deus da crença popular, não contra o Deus da teologia natural. E como Deus, na mente da maioria dos ocidentais, é predominantemente o Deus das escrituras judaico-cristãs[1], tenho poucas opções além de citar a Bíblia livremente de maneira a confrontar diretamente as crenças teístas que são meu alvo e me antecipar às acusações de ter compreendido ou interpretado mal minhas fontes.
Segunda: o fato é que a maioria dos filósofos da religião renomados que publicam em periódicos acadêmicos como Faith and Philosophy creem no Deus da Bíblia, não somente no Deus dos filósofos. Para citar apenas alguns nomes, tenho em mente pessoas como William Alston, Peter van Inwagen e Alvin Plantinga. Todos eles são, como Plantinga coloca, “pessoas da Palavra que consideram as Escrituras um caso especial de revelação do próprio Deus“[2]. Nenhum deles reluta em citar capítulo e versículo das Escrituras Sagradas — os mais palatáveis, obviamente — tanto em suas publicações quanto no púlpito.
William Alston, por exemplo, afirma: “…uma grande parcela das Escrituras consiste de registros de comunicações entre Deus e os homens“, e sustenta que Deus continua a se revelar a “cristãos sinceros” de hoje de maneiras que variam de orações respondidas a pensamentos que simplesmente pipocam na mente de alguém.[3] Peter van Inwagen confessa: “Aceito plenamente os ensinamentos de minha denominação segundo os quais ‘as Escrituras Sagradas do Velho e do Novo Testamento são a Palavra revelada de Deus’“.[4] E Alvin Plantinga sustenta que: “A Escritura é inerrante: o Senhor não comete erros; o que ele propõe para conteúdo de nossas crenças é o que devemos acreditar.“[5]
Estes pontos de vista caracterizam o tipo de teísmo, a saber, o teísmo bíblico, a cuja refutação tenho me dedicado.
Agora vamos a meu argumento para o ateísmo.
Introdução:
“Se Deus não existe, todas as coisas são permitidas.” Assim disse um dos personagens de Dostoievski na obra “Os irmãos Karamazov”. Ele estava afirmando que se Deus não existe, então os valores morais seriam uma questão meramente subjetiva a ser determinada por caprichos individuais ou pela contagem de cabeças no grupo social ao qual alguém pertence; ou talvez ele estivesse mesmo dizendo que valores morais seriam totalmente ilusórios e o niilismo moral prevaleceria. Resumindo — o argumento continua — se verdades morais objetivas existem, então Deus deve existir.
A título de contraste, argumento que se verdades morais objetivas existem, então Deus não existe. Apresento um argumento moral para o ateísmo.
A: Pontos de concordância com os teístas.
A respeito de quatro pontos, dois terminológicos e dois substantivos, eu concordo com meus oponentes teístas.
Primeiro: eu concordo com eles a respeito do significado do termo “Deus”, e nego que Deus exista. Não estamos falando de qualquer divindade obsoleta. Não estamos falando, por exemplo, sobre Baal (deus dos cananitas) ou Aton (deus egípcio), ou Zeus (deus grego), ou Brama (divindade hindu), ou Huitzilopochtli (deus asteca). Todos esses, junto com outros 200 ou mais, citados em obras sobre religião comparada, foram divindades supremas. Cada uma delas foi adorada e obedecida por milhões. Contudo, como H. L. Mencken colocou em seu artigo de 1922 “Serviço Memorial”, “todos estão mortos.”
Apesar de o termo “teísmo” ser frequentemente utilizado num sentido amplo de forma a abraanger a crença em qualquer tipo de deus ou deuses sobrenaturais que se revelam para os humanos, eu o utilizarei — como a maioria dos filósofos e teológos agora fazem — num sentido um tanto mais estrito. O teísmo sobre o qual estarei falando a respeito não é somente a crença num ou noutro deus qualquer. É a crença no Deus das tradições ortodoxas judaicas, cristãs e islâmicas. É a crença num Deus que distingue-se de todos estes outros em dois aspectos principais. Primeiro, ele é santo (isto é, moralmente perfeito). Segundo, ele se revelou para nós nas Escrituras Sagradas. É em virtude de sua Santidade que ele é considerado digno de adoração e obediência. E é em virtude de ter se revelado a nós nas Escrituras que sabemos sobre sua natureza e quais ações ele nos permite ou proíbe fazer.
O Deus do Teísmo, assim compreendido, é um ser sobrenatural robusto. Ele não deve, portanto, ser identificado com o Deus metafisicamente mutilado de teólogos liberais como Paul Tillich e o bispo Robinson, para os quais Deus é algo como “nossa mais profunda inquietação” e a Bíblia é apenas uma fábula inventada pelo homem, ou na melhor das hipóteses um romance quase-histórico. Nem deveria ser o Deus dos teístas identificado com o ser incognoscível dos deístas como Voltaire e Thomas Paine para os quais Deus era uma entidade hipotética invocada meramente para explicar as origens e a natureza do universo, e a Bíblia uma fraude moral e intelectual impingida sobre os crédulos pelos profetas, papas, padres e pastores. No sentido estrito da palavra, cada um dos quatro pensadores citados é um ateu. E, no mesmo sentido, também eu sou. Mas não vejo nenhuma necessidade de um deus ou qualquer coisa do tipo. Vejo apenas obscuridades semânticas na roupagem liberal de sentimentos humanistas (que eu aplaudo) combinadas com tagarelice piedosa (que eu deploro). E eu encontro somente inferências falaciosas na suposição de que podemos explicar porque qualquer coisa existe conjeturando que alguma outra coisa existe além do explicandum; pois tal suposição segue rumo a uma regressão infinita.
Segundo: penso que os teístas concordariam comigo sobre o que queremos dizer quando falamos de moralidade objetiva. Queremos dizer um conjunto de verdades morais que permaneceriam verdadeiras não importa o que qualquer indivíduo ou grupo social pensasse ou desejasse. A noção de moralidade objetiva é antitética a todas as formas de subjetivismo moral. Ela sustenta, primeiro, que possuímos crenças morais que são ou verdadeiras ou falsas; que elas não são meras expressões de emoções e sentimentos, similares a suspiros e gemidos de prazer e dor. Ela sustenta, em segundo lugar, que a falsidade ou veracidade de nossos julgamentos morais é uma função de se os objetos de apreciação moral, os agentes e suas ações, possuem as propriedades morais que lhes imputamos, ou não; que sua veracidade ou falsidade não é uma mera função dos pensamentos, sentimentos ou atitudes de indivíduos ou de convenções sociais. E ela sustenta, em terceiro lugar, que podem existir verdades morais que ainda aguardam pela nossa descoberta, pela revelação ( sob a interpretação teísta) ou através da razão e da experiência — combinadas, talvez, com nossa biologia cambiante — (sob a minha interpretação).
Terceiro: concordarei com meus oponentes teístas em sustentar que ao menos alguns princípios morais são objetivamente verdadeiros. Admitimos que discordâncias sobre temas morais — sobre a permissibilidade do aborto ou da pena de morte, por exemplo – frequentemente originam fortes reações emocionais. Mas isto não significa que tais desacordos sejam nada além de rompantes emocionais. Pois consideramos um fato da psicologia moral que possuímos crenças bem como emoções a respeito de tais temas controversos. E uma vez que nada conta como crença a menos que seja verdadeiro ou falso, concluímos que nossas crenças morais — à semelhança de crenças a respeito do formato do planeta e da idade do universo — são verdadeiras ou falsas. Nem, a partir do fenômeno da discordância moral, segue-se que a verdade ou falsidade de um julgamento moral é determinável por cada indivíduo ou pela contagem de cabeças. Pois consideramos que a perspectiva relativista acerca de temas morais não é mais defensável do que o relativismo a respeito de questões de fato.
Quarto: seria de se esperar que os teístas concordem comigo quando eu oferecer alguns exemplos concretos de princípios morais que eu considero serem objetivamente verdadeiros.
A exigência de objetividade para os valores morais é estritamente uma: ela implica que eles devem ser universais no sentido de não admitirem exceção — isto é, de serem válidos para todas as pessoas, lugares e épocas. Assim, em meu ponto de vista, o princípio segundo o qual é moralmente proibido matar outras pessoas não é objetivamente verdadeiro uma vez que – como quase todos concordariam — ele admite exceções tais como matar um assassino em potencial em defesa própria ou de seus familiares. Formulado desta maneira é um princípio moral falso. Podemos ter uma obrigação prima facie de não matar outra pessoa. Mas pensadores morais sofisticados consentiriam que existem situações nas quais o princípio deveria ser colocado de lado em virtude de considerações morais compensatórias. Se formos apresentar princípios morais que sejam válidos sem necessidade de restrições, precisamos formula-los de forma a englobar adequadamente estas outras considerações.
B. Exemplos de verdades morais objetivas
Apresento agora alguns exemplos de princípios morais que considero serem paradigmas de verdades morais objetivas:
P1: É moralmente errado assassinar deliberada e impiedosamente homens, mulheres e crianças que sejam inocentes de quaisquer transgressões graves.
Uma violação flagrante deste princípio é encontrada nas políticas genocidas da SS nazista que, seguindo as ordens de Hitler, assassinaram seis milhões de judeus, junto com incontáveis ciganos, homossexuais, e outros assim chamados “indesejáveis”. Não é desculpa, da maneira como vejo, o fato de eles acreditarem estar extirpando um câncer da sociedade, ou que eles estivessem, como Hitler explicou em 1933, apenas fazendo aos judeus o que os cristãos vinham pregando por dois milênios[6]. Outra violação mais recente deste princípio pode ser encontrada nas práticas genocidas de Milosevic e seus capangas, para os quais não é desculpa dizer que estavam apenas corrigindo injustiças passadas ou, através da limpeza étnica, lançando os fundamentos de uma sociedade mais coesa e estável.
P2: É moralmente errado guarnecer o exército de alguém com mulheres jovens feitas prisioneiras para serem utilizadas como escravas sexuais.
Este princípio, ou algum similar a este, jaz por trás de nossa repulsa moral às políticas dos altos comandos japoneses e alemães que selecionavam jovens mulheres sexualmente atraentes, especialmente virgens, para proporcionar pretensos “confortos” a seus soldados. É irrelevante, quero dizer, que, historicamente, a maioria das sociedades tenha considerado tais “confortos” como espólios de guerra aceitáveis.
P3: É moralmente errado obrigar pessoas a canibalizarem seus amigos e familiares.
Talvez possamos imaginar situações – como a queda de um avião nos Andes — nas quais atos de canibalismo possam ser exonerados. Mas fazer as pessoas comerem os membros de sua própria família – como várias tribos polinésias são acusadas de terem feito – com o objetivo de puni-las, ou para horrorizar e impingir medo nos corações de seus inimigos, é inconcebível.
P4: É moralmente errado imolar seres humanos em sacrifício, queimando-os ou por outros meios.
Não há dúvidas, o sacrifício humano era largamente praticado pelas tribos contra as quais os filhos de Israel lutaram, e — do outro lado do Atlântico — pelos astecas e incas. Mas isto — espero que todos vocês concordem — não torna a prática aceitável, mesmo se fosse realizada para apaziguar os deuses nos quais eles acreditavam.
P5: É moralmente errado torturar pessoas eternamente por suas crenças.
Talvez possamos imaginar situações nas quais seria permissível torturar alguém que seja ele próprio um torturador de maneira a obter informações sobre a localização dos prisioneiros que de outra maneira morrerão como consequência das agressões que lhes estão a ser infligidas. Mas casos como o do Papa Pio V, que assistiu a Inquisição Romana queimar um acadêmico religioso dissidente por volta de 1570, ultrapassam o limite do moralmente aceitável; ele não pode ser isentado pelo fato de que pensava estar desta maneira salvando a alma do dissidente das chamas eternas do Inferno.
A respeito de todos estes exemplos, gosto de pensar, teístas e outras pessoas moralmente esclarecidas concordarão comigo. E, além disso, também me agradaria pensar que os teístas concordariam comigo em sustentar que qualquer um que cometesse, causasse, comandasse ou tolerasse atos de violação de qualquer destes princípios — os cinco aos quais me referirei de agora em diante como “nossos” princípios” — é não somente cruel como abominável.
C: As violações de Deus de nossos princípios morais.
E agora vem o elemento decisivo de meu argumento moral contra o teísmo. Pois, como demonstrarei agora, o Deus teísta — como ele supostamente se revela nas Escrituras judaicas e cristãs — ou comete ele próprio, ou ordena que outros cometam, ou permite, atos que violam cada um de nossos cinco princípios.
Em violação de P1, por exemplo, o próprio Deus afogou toda a raça humana exceto Noé e sua família [Gen. 7:23]; ele puniu o rei Davi por realizar um censo por ele ordenado e então atendeu a solicitação de Davi de que outros fossem punidos em seu lugar através do envio de uma praga que matou 70 000 pessoas [II Sam. 24:1-15]; e ele ordenou que Josué assassinasse velhos e jovens, pequenas crianças, virgens, e mulheres (os habitantes de uns 31 reinos) enquanto prosseguia em suas práticas genocidas de limpeza étnica nas terras que judeus ortodoxos ainda consideram parte da Grande Israel (veja o cap. 10 do livro de Josué em particular). Estes são somente três de centenas de exemplos das violações de Deus de P1.
Em violação de P2, após ordenar que soldados chacinassem todos os homens, mulheres e garotos midianitas sem piedade, Deus autorizou que os soldados dispusessem sexualmente das 32 000 virgens sobreviventes. [Num. 31:17-18].
Em violação de P3, Deus repetidamente diz ter feito, ou que fará, pessoas canibalizarem suas próprias crianças, maridos, esposas e amigos para puni-los por sua desobediência. [Lev. 26:29, Deut. 28:53-58, Jer. 19:9, Ezeq. 5:10]
Em violação de P4, Deus tolerou que Jeftá lhe ofertasse em sacrifício numa fogueira sua única filha [Juízes 11:30-39].
Finalmente, em violação de P5, o cordeiro sacrificial do próprio Deus, Jesus, observará impassível enquanto Ele tortura a maior parte dos membros da raça humana eternamente, principalmente porque não acreditaram nele. O livro do Apocalipse nos diz que “cada um cujo nome não tiver sido escrito desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro que foi morto” [Apoc. 13:8] irá para o inferno, onde “serão atormentados com fogo e enxofre na presença dos anjos sagrados e na presença do Cordeiro; e a fumaça de seu tormento subirá eternamente: e eles não terão descanso dia ou noite” [Apoc. 14:10-11].
D: Um dilema lógico para os teístas: uma tétrade inconsistente
Estas – e incontáveis outras — passagens da Bíblia significam que os teístas são confrontados com um dilema lógico que atinge o âmago de sua crença de que o Deus das Escrituras é santo. Eles não podem, sem se contradizerem, acreditar em todas as quatro afirmações a seguir:
(1) Qualquer ato que Deus realize, cause, ordene ou tolere é moralmente permissível.
(2) A Bíblia nos revela vários atos realizados, causados, ordenados ou tolerados por Deus.
(3) É moralmente inadmissível para qualquer um realizar, causar, ordenar ou tolerar atos que violem nossos princípios morais.
(4) A Bíblia nos diz que Deus de fato cometeu, causou, ordenou ou tolerou atos que violam nossos princípios morais.
O problema é que estas declarações formam uma tétrade inconsistente tal que a partir de quaisquer três delas alguém pode inferir validamente a falsidade da remanescente. Assim, alguém pode coerentemente afirmar (1), (2) e (3) somente ao custo de abrir mão de (4); afirmar (2), (3) e (4) somente ao custo de desistir de (1); e assim por diante.
O problema para um teísta é decidir qual destas quatro declarações abandonar a fim de salvaguardar o requisito mínimo de verdade e racionalidade, a saber, a consistência lógica. Afinal, se alguém mantêm crenças que se contradizem então suas crenças não podem ser todas verdadeiras. E discussão racional com pessoas que se autocontradizem é impossível; se contradições são permitidas então qualquer coisa pode acontecer.
Mas qual dos quatro enunciados irá nosso teísta negar?
Negar (1) seria admitir que Deus ocasionalmente comete, causa, ordena ou tolera atos moralmente inadmissíveis. Mas isso significaria que o próprio Deus é imoral, ou até mesmo, dependendo da magnitude de seus delitos, que ele é maligno. Isso implicaria negar que ele é santo e digno de adoração; e negaria, adicionalmente, que sua santidade é o fundamento da moralidade.
Negar (2), para o teísta, seria abandonar o principal fundamento da epistemologia religiosa e moral (maneiras de adquirir conhecimento religioso e moral). Pois se (2) fosse falsa, surgiria então a questão de como saberíamos da existência de Deus, ou, ainda pior, como ele nos serviria como referência moral. Afinal, é uma característica distintiva do teísmo, em oposição ao deísmo, sustentar que Deus se revela para nós e, de tempos em tempos, intervém na história humana. E a Bíblia, segundo os teístas, é o principal registro de suas intervenções revelatórias. Se a Bíblia, com suas histórias sobre Moisés e Jesus, não é sua palavra revelada e presumivelmente verdadeira, então como teremos conhecimento sobre ele? Se Deus não se revela através de Moisés no Velho Testamento e de Jesus no Novo Testamento, então através de quem ou de que ele se revela? A bem da verdade, um teísta poderia afirmar que Deus também se revela por outros canais além da Bíblia: razão, tradição e experiências religiosas sendo todas exemplos em questão. Mas negar que a Bíblia seja seu principal modo de comunicação seria negar que os principais personagens do Judaísmo e do Cristianismo possam realmente ser, afinal, conhecidos. Fora dos registros escriturais, saberíamos muito pouco, se é que saberíamos qualquer coisa, acerca de Moisés ou Jesus, sendo bastante questionável se a história secular possui qualquer coisa confiável a dizer a respeito de qualquer um deles. Afora os registros escriturais não teríamos conhecimento algum dos assim chamados Dez Mandamentos que Deus supostamente entregou a Moisés, ou dos princípios éticos que Jesus supostamente proferiu em seus sermões e parábolas.
Negar (3) seria declarar que é moralmente admissível violar nossos cinco princípios morais. Seria tornar-se cúmplice de monstros morais como Ghenghis Khan, Hitler, Stalin e Pol Pot. Seria abandonar toda e qualquer pretensão a uma crença em valores morais objetivos. Mais ainda, se é permissível violar os princípios acima, então não é fácil ver que tipos de ações não seriam admissíveis. A negação de (3), então, seria equivalente a adotar o niilismo moral. E nenhum teísta que acredita nos Dez Mandamentos ou no Sermão da Montanha consentiria nisso.
Isso deixa apenas (4). Mas negar (4) seria colidir com a realidade de fatos determináveis por qualquer um que faça uma leitura cuidadosa: fatos objetivos sobre o que Bíblia realmente diz.
Adiante argumentarei que tanto (3) quanto (4) são verdadeiras; desta maneira confrontarei os teístas com a necessidade de abandonar (1) ou (2) – os dois pilares principais da crença teísta. Meus argumentos mostrarão que se Deus existisse então ele ou não seria santo ou as Escrituras não seriam sua palavra revelada.
Devo, entretanto, lidar com os contraargumentos dos que defendem Deus e as Escrituras contra críticas como as minhas. Apologistas teístas possuem duas estratégias principais. Uma é tentar mostrar, contrariando (4), que a Bíblia ou não diz realmente o que eu afirmo que ela diz, ou que as passagens que cito não significam o que eu digo que significam. Esta tática envolve um certo tipo de maquiagem das passagens em discussão de modo a torna-las moralmente inócuas. A outra é tentar mostrar, contrariando (3), que nossos princípios morais são ou inaplicáveis às situações descritas em (4) ou que eles admitem exceções que absolveriam Deus por viola-los.
Eu me ocuparei com estas duas estratégias apológeticas a medida em que surgirem em conexão com minha defesa da veracidade de (4) e (3), nesta ordem.
E: Uma defesa de (4): O que a Bíblia de fato diz sobre as violações de nossos princípios morais por Deus.
P1 e a matança de inocentes.
Primeiro: considere a história, nos capítulos 6 e 7 do livro de Genêsis, do Grande Dilúvio e da Arca de Noé. É uma história conhecida o bastante para me dispensar de reconta-la detalhadamente. Basta dizer que por causa da perversidade que Deus viu sobre a terra, ele decidiu – em suas próprias palavras — “Destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito” (Gen. 6:7). As únicas exceções humanas foram Noé e sua família.
Segundo: considere a estranha história sobre Deus ordenando ao Rei Davi que fizesse um censo de seu povo. É estranha por três razões. Da maneira que a história é contada em 2 Samuel, cap. 24, é-nos ditos que Deus expediu Davi com a ordem “Vá, conte Israel e Judá”; que após cumprir esta ordem, Davi chegou à estranha conclusão de que havia por esse meio “cometido um grande pecado”; que Deus então ofereceu a Davi escolher entre três castigos: sete anos de fome e escassez, três dias de peste, ou três meses sendo perseguido e importunado por seus inimigos; que nosso nobre rei escolheu a fome ou a peste para os outros em vez de expor a si próprio; e que Deus aquiesceu: “o Senhor enviou uma praga sobre Israel…”; e “setenta mil homens do povo que habitava desde Dan até Beersheba morreram.” É intrigante que um Deus justo desejaria punir Davi por obedecer suas ordens. Mais intrigante é o fato do Deus santo derramar sua fúria sobre outros matando setenta mil homens (e um número indeterminado de mulheres e crianças, que parecem não ser considerados na maioria das narrativas bíblicas). É ainda mais intrigante que quando a história é recontada em I Crônicas, cap. 21, descobrimos que foi Satanás, não Deus, que incitou Davi a empreender o censo. A inconsistência já é ruim o bastante uma vez que pelo menos uma destas histórias deve ser falsa. É ainda pior que, em ambas as versões, é Deus — não Satanás – que assassina quem não tinha nada a ver com o suposto pecado de Davi.
Terceiro, considere o caso no qual Deus manda Josué matar virtualmente todos os habitantes da terra de Canaã. A história começa no capítulo 6 do livro de Josué, contando como o herói e seu exército conquistou a antiga cidade de Jericó onde eles “tudo quanto havia na cidade destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento.” Então, do capítulo 7 até o 12, somos brindados com uma crônica arrepiante sobre os 31 reinos e todas as cidades que continham, que caíram vítimas das políticas genocidas de Deus e de Josué. Vez ou outra lemos as frases “ele destruiu completamente cada pessoa que havia nela”, “não deixou sobreviventes”, e “nenhum foi deixado respirando”. E a título de explicação da razão pela qual apenas um dos povos autóctones selou a paz com os invasores, é-nos dito “Pois de Jeová veio o endurecimento dos seus corações, para saírem à guerra contra Israel, a fim de que fossem destruídos totalmente, e não achassem piedade alguma… [Josué 11:20]. A ocasião e a justificativa para matar fora forjada pelo próprio Deus.
O que é moralmente preocupante sobre cada um destes três casos é que Deus aparentemente não teve escrúpulos em ordenar a matança de pessoas que, em qualquer sentido ordinário das palavras, eram “inocentes de transgressões sérias.” Afinal, é uma questão fatual empírica explícita que crianças recém-nascidas, e menos ainda aquelas não-nascidas, não são capazes de fazer os tipos de coisas que justificam punições como afogamentos, ser morto no fio da espada, arrancado do útero de sua mãe[7], ou morrer de uma praga enviada por Deus. A Bíblia, contudo, relata despudoradamente que elas estavam dentre as incontáveis vítimas das ações ou das ordens de Deus.
P2 e a entrega de virgens capturadas para as tropas
O livro dos Números, cap. 31, começa com o Senhor dizendo a Moisés, “Vingue-se plenamente pelos filhos de Israel dos midianitas”, então dizendo como – em obediência às ordens de Deus — doze mil guerreiros primeiro “mataram todos os homens” [vers. 7], e “aprisionaram todas as mulheres de Midian e suas crianças” [vers. 9]. Mas nós lemos, “Moisés estava furioso com os oficiais do exército … e perguntou-lhes, Vocês pouparam todas as mulheres?… Agora, pois, mate todos os meninos dentre as crianças, e mate toda mulher que tenha conhecido intimamente um homem. Mas todas as jovens que não conheceram um homem intimamente, poupem-nas para vocês.” [vers. 15-18]
Agora, deve ser admitido que em nenhum lugar desta história de violência e escravização é-nos dito explicitamente que as tropas dos exércitos do Senhor usaram as virgens capturadas para sua própria satisfação sexual. Então não chega a surpreender que alguns apologistas amparem-se nesta omissão a fim de argumentar que P2 absolutamente não foi violado. Um apologista deste tipo afirma implicitamente que os soldados levaram as mulheres somente como “esposas ou servas”. Afinal, ele nos tranquiliza, “a lei de Deus dizia que qualquer um que mantivesse relações sexuais fora do casamento heterossexual seria condenado à morte” e que “qualquer homem que cometesse fornicação… seria forçado a casar com a mulher e nunca lhe seria permitido se divorciar dela.”[8]
Mas isso não resiste uma ánalise mais detalhada. A Bíblia narra numerosos casos de assim chamados “homens de Deus” que fornicaram e não casaram – e as vezes até casaram — e não foram punidos seja pelos homens seja por Deus. Exemplos incluem os encontros sexuais de Abraão e sua escrava egípcia Agar; o relacionamento adúltero do rei Davi com Bathsheba; e o rei Salomão, fruto deste relacionamento, e suas trezentas concumbinas.
Alguém teria que ser extraordinariamente ingênuo para supor que, dos doze mil soldados, não houve nenhum que não tirou vantagem sexual das trinta e duas mil virgens – mais de duas para cada soldado – que Deus lhes concedeu para uso próprio.
P3 e fazer com que pessoas canibalizem seus parentes.
Há ao menos cinco passagens nas quais Deus diz a seu povo que se eles não o obedecerem eles serão punidos sendo reduzidos uma penúria tão extrema que verão-se obrigados a canibalizarem uns aos outros: filhos, filhas, maridos, esposas, pais, mães, e irmãos, para nada dizer dos meros amigos[9]. O livro de Jeremias é especialmente revelador. No capítulo 19, versículo 9, o próprio Deus reivindica responsabilidade direta por estes horrores quando diz: “E eu os farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas…”
Para estas passagens os apologistas costumam oferecer duas racionalizações principais. Uma é que Deus está meramente ameaçando seu povo escolhido com a fatalidade que lhes sucederá se eles não obedeceram a seus mandamentos. A segunda é que ele está meramente prevendo a sina que lhes sobrevirá durante os iminentes cercos a serem realizados por seus inimigos. O problema com a hipótese da ameaça é que, em cada exemplo, os Filhos de Israel na verdade desobederam seus mandamentos, apesar das graves ameaças. Assim, se Deus não faz o que ameaçou fazer, suas ameaças eram vazias e ele repetidamente falhou em manter sua palavra. E o problema com a hipótese da profecia, é que se as coisas não saíssem como Deus previu, então ele teria feito uma falsa profecia. Mas em qualquer caso nenhuma das explicações ajudaria com a passagem do livro de Jeremias, na qual Deus não está simplesmente prevendo o que os inimigos de Israel o forçarão a fazer, mas declarando o que ele próprio o obrigará a fazer. Não há contradição no fato de que se a palavra de Deus é verdadeira, então ele força os outros a violar P3.
P4 e a tolerância com o sacrifício de crianças
No capítulo 11 do livro de Juízes, somos afrontados com um conto cauteloso sobre a quebra de um juramento e suas consequencias. Jeftá, é-nos dito, foi um homem poderoso que foi usado por Deus para dar continuidade à tradição de Josué, eliminando da terra de outro povo etnicamente distinto, os filhos de Amon. Lemos que Jeftá “fez um juramento a Deus, e disse, se me entregares nas mãos os filhos de Amon, a pessoa, seja ela qual for, que sair da porta da minha casa ao meu encontro, quando eu voltar vitorioso dos filhos de Amon, será de Jeová e eu a oferecerei em holocausto.” (vers. 31-32)
O Senhor, ao que parece, achou isto perfeitamente aceitável. Ele manteve sua parte da barganha entregando os amonitas e suas vinte cidades “com uma grandiosa matança” nas mãos de Jeftá. Então foi a vez de Jeftá de cumprir sua parte no acordo. Mas, lamentavelmente, foi sua filha quem saiu-lhe ao encontro para cumprimenta-lo. Jeftá percebeu, no entanto, que devia manter a fé e a palavra dada a Deus. Assim lemos: “Passados os dois meses, tornou ela para seu pai, o qual lhe fez segundo seu juramento…” Em outras palavras, Jeftá manteve sua promessa oferecendo sua amada filha em sacríficio numa fogueira para seu Deus implacável. Assim Jeftá angariou para si uma menção honrosa na Epístola aos Hebreus[10] onde ele é citado junto com quinze ou mais homens de “grande fé” como Noé, Abraão, Moisés, Sansão, Davi e Samuel.
A melhor interpretação que pode ser feita desta história horripilante é que ela é um tipo de fábula, um conto inventado por homens com a intenção de nos ensinar uma lição sobre a necessidade de reflexão e ponderação antes de assumir compromissos com os outros, especialmente com uma divindade. Tal exegese, entretanto, dificilmente pode ser aceitável para um teísta que creia piamente na Bíblia. Mas em qualquer caso, não deveríamos ficar realmente surpresos com a aceitação, por Deus, do sacrifício de Jeftá. Afinal, o próprio Deus — os teístas cristãos acreditam – ofereceu seu próprio filho Jesus como um sacrifício de sangue pelos pecados da humanidade.
P5 e a tortura eterna que Deus reserva para os que não acreditam que Jesus é o Senhor e Salvador
A sorte da filha de Jeftá esmaece até a insignificância quando comparada com a que o Deus cristão reserva para ateus sinceros como eu; e não somente para os ateus, mas para todos que falham em aceitar Jesus Cristo como seu salvador pessoal. Jesus, que possui a duvidosa reputação de haver inventado a doutrina da danação nas chamas do inferno, descreve nosso destino vividamente. No Evangelho de Mateus sozinho ele o caracteriza em termos que os evangelistas adoram: “fogo inextinguível”, “inferno ardente” (duas vezes), “tormento”, “queimado com fogo” “fornalhas do inferno” (duas vezes), “choro e ranger de dentes” (cinco vezes), “fogo eterno”, e “o fogo eterno que foi preparado para o demônio e seus anjos.”
Presumindo que Jesus soube como dizer precisamente o que ele quis que fosse entendido, a sina dos descrentes é indubitável. Não é um mero arremesso honroso no esquecimento. Não é simplesmente a angústia de uma alma apartada de Deus. É o tormento e a agonia de um corpo ressurreto, tortura que difere da experimentada pelas vítimas da Inquisição somente pelo fato de que dura não somente por minutos mas por toda a eternidade. Ao contrário de Auschwitz, o Inferno não oferece nenhuma finalidade para aqueles de nós que preencherão seus fornos. Ninguém escapará de seus horrores, e suas torturas — a serem levadas a cabo diante da platéia divina — continuará indefinidamente[11].
Fosse este destino escaldante reservado apenas para os impenitentes genocidas e outros perpetradores do mal que tem manchado a história humana, tal violação de P5 já seria ruim o bastante. Mas Apocalipse 13:8 vaticina que este destino recairá sobre “todo aquele cujo nome não tiver sido escrito desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro…” E Apocalipse 20:15 confirma a profecia quando nos diz que “se o nome de qualquer pessoa não foi encontrado escrito no livro da vida, ele foi lançado no lago de fogo.”
Quem são os predestinados à danação eterna? São todos aqueles que — como os evangélicos gostam de colocar – não são cristãos “renascidos”. Segundo Lucas, o pretenso autor dos Atos dos Apostólos, “E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos.” (Atos 4:12). E São Paulo torna ainda mais claro quando nos diz que “E a vós, que sois atribulados, descanso conosco, quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu poder, como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo; os quais, por castigo, padecerão eterna perdição, ante a face do Senhor e a glória do seu poder” (2 Tessalonicenses 1:7-9).
A esta altura, pode ocorrer a alguns de nós que como é uma condição necessária da crença no nome de Jesus que vocês tenham tanto ouvido o nome quanto compreendido seu significado, ninguém pode ser salvo do inferno se não tiver ouvido o evangelho. É esta, portanto, a origem da motivação dos missionários. Mas o que dizer daqueles que viveram em épocas ou lugares nos quais o nome de Jesus era desconhecido? Estão todos os que viveram antes da época de Cristo já condenados? E acerca daqueles que viveram, ou ainda vivem, ignorantes da história cristã? Estão eles — a maior parte da raça humana – condenados pela ausência de uma crença que, por razões históricas ou geográficas, estavam impedidos de possuir?
Esta conclusão chocante é o que a Bíblia implica. Certamente, o próprio Jesus parece te-la aceitado tranquilamente: “E porque estreita é a porta, e árduo o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem.” A exclusão da maior parte dos seres humanos — não importa quão virtuosamente eles vivam — pela única razão de que eles não acreditam em Jesus como Salvador, é uma consequencia do fato de que a maioria da população que já habitou o planeta até o presente sequer ouviu falar dele. Se formos levar o próprio Jesus a sério, pouco conforto pode ser encontrado na sugestão de São Paulo de que alguns podem encontrar a salvação como resultado da assim chamada revelação geral. Como um dos mais hábeis apologistas cristãos, Wlliam Lane Craig, reconhece, tais exceções à regra da “salvação por nenhum outro nome” podem na melhor das hipóteses serem raras. É por isto que Craig não dissimula o fato de que em sua visão, e na de Jesus, mesmo os mais sinceros adeptos de outras religiões mundiais estão “perdidos e morrendo sem Cristo”[12].
Contudo, toda esta conversa sobre o numero de pessoas que serão torturadas no inferno é um aspecto secundário do assunto. Que é a questão de se os tormentos do inferno são finitos ou infinitos em duração. Se houver uma pessoa sequer sofrendo as torturas dos condenados, então o principio moral que consagramos como P5 é desse modo violado pelo próprio Deus. E em virtude de Deus viola-lo — junto com nossos outros princípios morais — sua alegada santidade está indiscutivelmente comprometida. Assim como seria incoerente dizer que Hitler foi moralmente perfeito apesar do fato de ter enviado pessoas para as câmaras de gás pelo “pecado” de não possuírem a ancestralidade correta, também seria incoerente supor que Deus é moralmente perfeito apesar do fato de que ele irá enviar pessoas para assar no inferno pelo “pecado” de não possuirem as crenças corretas. Ao contrário, qualquer um que seja culpado de tais atrocidades é, sem meias palavras, simplesmente mau, cruel, perverso, vil. Pouco surpreende, então, que Deus diga sobre si mesmo não apenas “Eu faço a paz” como também “Eu crio o mal” (Is. 45:7).[13]
Vale a pena notar que, comparado com Deus, Satanás é retratado na Bíblia como um relativo paradigma de virtude. Satanás é culpado de apenas três delitos principais.
Primeiro, segundo uma passagem que estabelece a tom moral da Bíblia, Satanás — disfarçado de serpente — tenta Eva com o fruto proibido do esclarecimento moral, fruto do que é descrito como “a arvóre do conhecimento do bem e do mal”[14]. Alguém pode ter pensado nisso como uma coisa boa pois Satanás, desta maneira, colocou-a no caminho da educação moral. Mas Deus não queria que seus olhos fossem “abertos”, como Gen 3:5 coloca; ele desejava obediência cega. E assim Deus reagiu de maneira característica. Ele não somente puniu Eva por um ato que ela só soube que era errado após realiza-lo. Ele também puniu Adão, e todos os seus descendentes, incluindo você e eu. Ele impôs a todos nós o fardo do que os teólogos chamam Pecado Original: ele assegurou que nenhum de nós pudesse começar a vida sem esta insuperável desvantagem.
A próxima aparição de Satanás é no primeiro livro de Crônicas, onde ele desempenha o mesmo papel atribuído a Deus em 2 Samuel. Então, onde foi que ele errou desta vez? Se é bom o suficiente para Deus ordenar a Davi que realizasse um censo, por que Satanás estaria sendo moralmente condenável ao faze-lo?
A terceira aparição é no Livro de Jó, onde ele torna difícil a vida do protegido de Deus. Mas isso, deve-se notar, ocorre somente porque Deus lançara-lhe um desafio.
Depois disso, Satanás não faz quase nada de natureza questionável exceto por tentar o próprio Deus, na pessoa de Jesus, durante seu retiro de quarenta dias no deserto – um exercício fadado ao fracasso.
O que é extraordinário, à luz da subsequente difamação sofrida por Satanás, é que Satanás, ao contrário de Deus, não violou sequer um dos importantes princípios morais listados de P1 a P5.
F: Uma defesa de (3): a inadmissibilidade das violações de nossos princípios por Deus
A segunda estratégia apologética é argumentar que nossos princípios admitem exceções que, quando levadas em consideração, absolvem Deus da culpa.
O principal dentre os estratagemas apologéticos nesta categoria é o que eu devo chamar “Exceção da Soberania”. Nas palavras de um apologista, ele sustenta que “Deus é soberano sobre a vida” e pode por conseguinte fazer conosco o que desejar, “de acordo com sua vontade”.[15] Mas este argumento contém um equívoco fatal a respeito da palavra “pode”. É uma verdade trivial que se Deus é — como os teístas acreditam — soberanamente onipotente, então ele “pode” fazer seja o que for que ele desejar no sentido de possuir o poder ou a potência para faze-lo. Mas poder, refletimos, não confere o direito.
Certamente não se segue que Deus “pode” violar princípios morais no sentido de ser moralmente admissível ou correto para ele proceder assim. Se assim fosse, os monstros morais da história humana que reinaram soberanamente sobre seus impérios poderiam igualmente ser inocentes de transgressão.
Uma segunda tática é argumentar que Deus é isento das proibições de nossos princípios. Pode ser dito que conquanto estes sejam obrigatórios para seres humanos, não o são para Deus. Mas isso seria introduzir um padrão duplo e portanto comprometer a universalidade dos princípios morais. Relativizaria a moralidade a indivíduos ou épocas e a privaria da validade objetiva e absoluta com a qual os teístas estão comprometidos. Pior ainda para o caso teísta, colocaria em discussão a santidade de Deus. Pois santo é o que age de maneira santa. Isto é, se é para qualquer um ser apropriadamente descrito como moralmente perfeito, então seus atos de instrução, de comando e de autorização também devem ser moralmente perfeitos. Dizer que Deus é santo apesar da natureza perversa do que ele faz seria brincar com as palavras: seria privar a palavra “santo” de seu sentido usual e torna-la sinônimo de “mau”.
Um terceiro estratagema é afirmar que em todas as situações que consideramos Deus está agindo em concordância com o que alguns podem sustentar ser o princípio moral absoluto e primordial segundo o qual o pecado deve ser castigado. Pois a partir disso, junto com a doutrina teológica do Pecado Original — a doutrina de que todo ser humano, mesmo os fetos recentemente concebidos nos úteros de suas mães, herdam o pecado, ou ao menos a inclinação para o pecado, de Eva — segue-se que Deus tem o direito, não apenas o poder, de nos punir como lhe aprouver. Como um apologista coloca: “Como o fardo do pecado é a morte, Deus tem o direito de conceder e de tomar a vida.”[16] Coloco de lado as questionáveis pressuposições desta doutrina: que o pecado é genetica ou espiritualmente herdado; e que há justiça em nos considerar responsáveis por disposições para o pecado herdadas ou não colocadas em prática. Existe uma objeção mais importante a esta alegação apologética. Pois suponha que admitamos como verdadeira a afirmação implausível de que é em virtude da ausência universal da inocência humana que Deus deve ser desculpado por suas práticas genocidas. Então teremos que dizer que não há circunstâncias imagináveis, nem mesmo a inocência das vítimas, nas quais é moralmente errado massacrar homens, mulheres e crianças. Teríamos que abandonar P1 como uma verdade moral objetiva uma vez que seria totalmente vazia, inaplicável. E isso nos daria, como a Deus, autorização para chacinar impiedosamente qualquer um que nos aprouver. Tudo o que precisamos fazer é invocar a Exceção da Punição do Pecado Original. Afinal, a menos que adotemos o relativismo de um padrão duplo, se é bom o bastante para Deus também deve ser bom o bastante para nós.
Se uma sequer das exceções listadas acima aos nossos príncípios fosse sólida, tais princípios não seriam verdades morais mas falsidades morais. Na melhor das hipóteses, eles enunciariam meramente proibições morais prima facie, proibições que — a fim de torna-las moralmente obrigatórias — teriam que ser restringidas e modificadas de maneiras que autorizariam alguns dos comportamentos mais moralmente abomináveis dos quais qualquer pessoa poderia ser culpada. Em resumo, se reformuladas para acomodar Deus, elas igualmente acomodariam o Diabo e outras personificações do mal.
G: Consequencias para o teísmo: a falsidade de pelo menos um de seus pilares, (1) ou (2).
Retornemos agora à tétrade inconsistente que eu afirmei colocar tais problemas para a crença teísta. Eu demonstrei, primeiro, que (4) é verdadeira, isto é, que a Bíblia de fato nos diz que Deus viola nossos princípios morais; segundo, que (3) é verdadeira, isto é, que é moralmente inadmissível para qualquer um – incluindo Deus — violar estes princípios. Mas se estou certo, então os teístas não possuem uma escapatória de seu dilema lógico que não destrua o núcleo da crença teísta.
Eles tem uma escolha. Eles devem, sob pena de contradição, abandonar ao menos um, se não ambos, entre (1), a crença de que todos os atos de Deus são moralmente permissíveis, ou (2), a crença de que a Bíblia nos revela o que vários destes atos são. Ainda, como vimos, se eles abandonarem (1), com isso também abandonarão a crença na santidade de Deus; ao passo que se abandonarem (2), também se desfazem da crença na Bíblia como sua revelação.
E aqui eu termino a exposição de meu caso contra o teísmo: meu argumento moral para o ateísmo.
H: Um corolário de meu argumento: a falsidade da teoria ética teísta
Antes de terminar, entretanto, desejo chamar a atenção para um corolário de meu argumento. Considere, mais uma vez, a tétrade inconsistente pela qual o edifício inteiro do teísmo desmorona. Mas desta vez substitua as declarações (1), (2), (3) e (4) da tétrade inconsistente original por seus respectivos corolários:
(1)* Qualquer ato que Deus nos ordene realizar é moralmente admissível.
(2)* A Bíblia nos revela vários dos atos que Deus nos ordena realizar.
(3)* É moralmente inadmissível para qualquer um cometer atos que violem o princípio P1.
(4)* A Bíblia nos diz que Deus nos ordena realizar atos que violam o princípio moral P1.
Então um dilema lógico paralelo surge para a crença do teísta de que Deus, como revelado na Bíblia, é a fonte da moralidade objetiva ou, no mínimo, é um guia confiável para o que deveríamos ou não deveríamos fazer.
Em vez de desenvolver o argumento novamente, apresentarei este indiciamento adicional da crença teísta citando a Bíblia e então endereçando uma série de questões para aqueles que, como o filósofo Alvin Plantinga, afirmam que “o que [o Senhor] tenciona que seja o conteúdo de nossas crenças é o que devemos acreditar.” Pois deveria ser evidente que, se Plantinga e outros teístas bíblicos estiverem certos, então, uma vez que as crenças que o Senhor propõe incluem aquelas sobre o que devemos fazer, se o Senhor propõe que deveríamos fazer assim e assim, então assim e assim é o que devemos fazer.
Considere 1 Samuel 15:3 onde o Senhor ordena a seu povo:
“Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos.”
Agora pergunte-se:
1. “…matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito…” foi a palavra do próprio Deus que você adora?
2. É concebível que seu Senhor possa expedir novamente a mesma ordem em nossa época?
3. Se você acreditasse que recebeu tal ordem de seu Senhor, poderia e deveria você obedece-lo?
Se você responder “Não” à questão 1, você nega a autoridade da assim chamada palavra de Deus, a Bíblia. Se você responder “Não” à segunda pergunta — talvez porque você pense que seu Senhor possa ter corrigido e aprimorado suas maneiras – você nega que os mandamentos de Deus possuem o tipo de aplicabilidade universal que é condição necessária para que sejam concordantes com, para não mencionar a fonte de, verdades morais. Se você responder “Não” à terceira pergunta, você deve pensar que algumas vezes é correto, ou talvez obrigatório, desobedecer a Deus. Desta maneira você admite que as verdades morais são independentes, e podem até mesmo colidir com, as ordens de Deus. Você admite que a ética é, como a maioria dos filósofos tem há muito insistido, autônoma; e que devemos, portanto, pensar moralmente por nós mesmos.
Mas se você responder “Sim” a cada questão, então eu acuso sua crença no Deus do teísmo bíblico de ser não somente equivocada mas moralmente abominável. Pois, nas palavras de meu amigo, John Patrick, que pediu demissão do ministério presbiteriano da Nova Zelândia depois de descobrir quantos de seus paroquianos também responderam “Sim” às três perguntas:
uma doutrina que afirme que as Escrituras contém a Palavra de Deus, o governante supremo da fé e do dever, tem o poder de transformar pessoas que, em outros contextos são ponderadas, gentis e amáveis, num grupo disposto a aprovar o genocídio em nome do Senhor que eles adoram.[17]
1. Para os objetivos presentes não digo nada sobre o Deus do Alcorão. Basta dizer que meu argumento, se sólido, também é aplicável contra o teísmo islâmico.
2. Alvin Plantinga, “When Faith and Reason Clash: Evolution and the Bible,” Christian Scholar’s Review, Vol. XXI, No. 1, (Setembro de 1991), p. 8.
3. William Alston, “Divine-Human Dialogue and the Nature of God,” Faith and Philosophy, (Janeiro de 1985, p.6).
4. Peter van Inwagen, “Genesis and Evolution,” in Reasoned Faith, ed. Eleonore Stump, Cornell University Press, 1993, p.97.
6. Rod Evans and Irwin Berent, Fundamentalism: Hazards and Heartbreaks, Open Court, La Salle, Illinois, 1988, pp. 120-1. Também James A. Haught, Holy Horrors: an Illustrated History of Religious Murder and Madness, Prometheus Books, Buffalo, New York, 1990, p.163.
7. Veja Oséias 13:16: Samaria virá a ser deserta, porque se rebelou contra o seu Deus; cairão à espada, seus filhos serão despedaçados, e as suas grávidas serão fendidas pelo meio.
8. Brad Warner, “Deus, o Mal e o Professor Bradley” (manuscrito divulgado em caráter privado em resposta a meu debate com o representante da Cruzada Acadêmica por Cristo, Dr. Chamberlain, sobre o tema “Pode existir uma moralidade objetiva sem Deus?”). O debate aconteceu na Simon Fraser University em 25 de Janeiro de 1996.
[9] No Levítico, cap. 26, vers. 28-29, lemos: “Também eu para convosco andarei contrariamente em furor; e vos castigarei sete vezes mais por causa dos vossos pecados. Comereis a carne de vossos filhos, e a carne de vossas filhas.” No Deuteronômio, cap. 28, após o Senhor listar as dezenas de desastres e infortúnios que sucederão a seus povo se ele não observarem todos os seus mandamentos e estatutos, ele diz (nos vers. 53-58): “E comerás o fruto do teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas… Quanto ao homem mais mimoso e delicado no meio de ti, o seu olho será maligno para com o seu irmão, e para com a mulher do seu regaço, e para com os demais de seus filhos que ainda lhe ficarem; De sorte que não dará a nenhum deles da carne de seus filhos, que ele comer…” E mulheres refinadas e delicadas, também nos é dito, farão o mesmo. Em Jeremias, cap. 19, vers. 9, o show de horrores continua quando o Senhor diz: “E lhes farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas, e comerá cada um a carne do seu amigo, no cerco e no aperto em que os apertarão os seus inimigos, e os que buscam a vida deles.” Finalmente, em Ezequiel, cap. 5, vers. 10, a dieta divina é extendida aos pais quando Deus diz: “Portanto os pais comerão a seus filhos no meio de ti, e os filhos comerão a seus pais; e executarei em ti juízos, e tudo o que restar de ti, espalharei a todos os ventos.”
11. [Apocalipse 14:10-11] Verdade seja dita, o versículo continua identificando aqueles que sofrem essa sina com “aqueles adoram a besta e sua imagem, e qualquer pessoa que receber a marca de seu nome.” Mas eles já haviam sido identificados, no capítulo anterior, 13, vers. 8-18, como aqueles que não foram predestinados para a salvação.
12. William Lane Craig, “Nenhum outro nome: uma perspectiva do conhecimento médio sobre a exclusividade da salvação através de Cristo”, Faith and Philosophy, Abril de 1989, p. 187. Em seu ponto de vista, Deus está justificado em enviar descrentes voluntários e involuntários para o inferno porque ele sabe — antes de cria-los – que eles não teriam acreditado em Jesus como Salvador mesmo se tivessem ouvido sobre ele.
13. O termo hebraico que é traduzido aqui como “mal” é “rah”. Os tradutores da New American Standard, entretanto, preferem traduzi-lo como “calamidade” na passagem de Isaías e como “aflição” na passagem das Lamentações. Mas tal sanitização do original não ajuda realmente. Proporciona ao crente pouco alívio ouvir que Deus é a origem e a fonte das calamidades. E “aflição” — aprendemos com o New Collegiate Dictionary do Webster – é apenas um sinônimo de “mal”.
17. John Patrick, “Por qual autoridade?” publicado em Setembro de 1984 num boletim a seus companheiros clérigos da Igreja Presbiteriana da Nova Zelândia explicando por que se demitiu. Minhas três perguntas são derivadas das que ele colocou a seus paroquianos.
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