Após apreciarmos clipes que apresentam sessões de mulheres exuberantes, sensuais, com um apelo do Sex Appeal, presenteio o público do meu blog com este artigo precioso, garimpado na World Wide Web, pois meu blog choca as vezes, certas pessoas, mas não me importo, pois é nele que posso expressar a tempestade (brainstorm) de pensamentos que pairam em minha mente, o que não justifica algo próximo a promiscuidade, mas ao híbrido daquilo que habita na mente de muitos seres, e adormecido fica por toda uma vida, ou quiça dá-se vazão nos reconditos mais secretos de suas mentes, na briga incessante das sinapses, pois no consciente procura-se impedir, mas no inconsciente lá está, poderá ficar ou não, depende somente da provocação. (texto meu csl)
. Aspectos da sexualidade feminina em
A Serpente, de Nelson Rodrigues
Aspects of feminine sexuality in The Snake,
by Nelson Rodrigues
Juliana Carvalho Nascimento*
Laéria Fontenele*
RESUMO
Este artigo se propõe a analisar o texto A Serpente, última peça
de Nelson Rodrigues, buscando traçar uma articulação entre a
psicanálise e a literatura dramática, no que se refere ao campo
da feminilidade. Focando a construção das duas personagens
principais da trama, pretendemos investigar o papel que o amor
entre duas irmãs exerce na constituição feminina de cada uma
delas e qual o destino desse amor na vida adulta.
Palavras-chave: Nelson Rodrigues; psicanálise; feminilidade.
ABSTRACT
This article aims to analyze the text The Snake, the last play
written by Nelson Rodrigues, in order to articulate psychoanalysis
and dramatic literature, on that it refers to the field
of femininity. Focusing on the construction of the two main
characters of this plot, it intends to investigate what influence
love between two sisters exercises on the feminine constitution
of each one of them and what is this love destiny on adult life.
Key-words: Nelson Rodrigues; psychoanalysis; femininity.
* Universidade Federal do Ceará.
Revista Letras, Curitiba, n. 82, p. 113-130, set./dez. 2010. Editora UFPR.
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1. As mulheres no teatro de Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues escreveu 17 peças teatrais, destas, doze trazem
personagens mulheres no centro do conflito dramático; duas, destas 12, são
compostas apenas por mulheres. Nelson angariou paixões e antipatias em sua
trajetória como autor. A razão disto, o próprio dramaturgo explica: “Numa
palavra, estou fazendo um ‘teatro desagradável’, ‘ peças desagradáveis’.
[...] E por que ‘peças desagradáveis’? Segundo já se disse, porque são obras
pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na
platéia” (RODRIGUES, 1949, apud MAGALDI in RODRIGUES, 1993a, p. 37).
Coincidentemente, pestilento o teatro de Nelson Rodrigues e pestilenta
a psicanálise de Freud; isto porque os dois expuseram, cada qual à sua
maneira, os mecanismos e as fantasias inconscientes. A psique feminina,
nos dois, não escapa a esta exposição – antes a mobiliza.
O olhar jornalístico do autor ultrapassou a superficialidade dos
fatos e captou os desígnios inconscientes da constituição da mulher, dentre
os quais destacamos algumas dicotomias: o amor como vida e morte ao
mesmo tempo; mulher casta versus infiel (ou frígida versus pecadora); mulher
casada “amada todas as noites” versus mulher casada intocada; amor
e ódio entre mãe e filha; amor e rivalidade entre duas irmãs.
O amor entre duas irmãs, manifestado através da ligação amorosa
a um mesmo homem, é um tema que perpassa a obra de Nelson. Ele
encontra-se presente, com maior ou menor ênfase, em seis de suas 17 peças,
quais sejam: Vestido de Noiva, Álbum de família, Os sete gatinhos, O beijo
no asfalto, Bonitinha, mas ordinária e A serpente. Se considerarmos ainda
que primas criadas juntas são como irmãs, a peça Anjo negro também traz
essa temática diluída em sua trama. Na maioria dessas peças encontram-se
patentes, sob formas diversas, inúmeros jogos de identificação impulsionados
pelas personagens na busca de uma consistência para seu ser mulher. Esta
busca se presentifica tanto no fascínio exercido pela figura da prostituta,
quanto no amor (rival) entre duas irmãs. Quando inquirido por Magaldi
sobre sua insistência nesse tipo de amor,
[...] o dramaturgo respondeu que achava lindo o tema, de inesgotáveis
sugestões poéticas. Não é outra a colocação de Clessi [personagem
de Vestido de noiva]: ‘Engraçado – eu acho bonito duas
irmãs amando o mesmo homem! Não sei – mas acho!...’(MAGALDI
in RODRIGUES, 1993a, p. 21).
Faz-se mister atentarmos para tal repetição, lançando-nos na tarefa
de conferir inteligibilidade a esse achado. Para tanto, perguntamo-nos: o
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amor rival entre duas irmãs exerceria alguma determinação no processo que
conduz ao tornar-se mulher? Esse tipo de amor possibilitaria a construção
de que imagens de feminilidade?
Para dar conta dessas questões, o presente artigo toma como objeto
de investigação A serpente (1978), última peça de Nelson. Nela, optamos
por analisar as duas personagens principais, as irmãs, de modo que não nos
deteremos nas questões relativas aos demais personagens, mas poderemos
mencioná-los se necessários à caracterização das irmãs.
Em A serpente, um intenso amor (rival) entre duas irmãs é o tema
e motor da ação dramática. Os personagens postos em cena são: as irmãs,
Lígia e Guida, seus respectivos maridos, Décio e Paulo, e a Crioula das “ventas
triunfais”. Aqui Nelson expõe diversas nuances da relação entre irmãs, dentre
as quais destacamos: a fixação num tipo de amor infantil e incestuoso;
a busca pela construção de uma imagem de mulher, em que outra mulher
serve de sustentáculo (im)possível para essa construção.
Quanto ao aspecto formal, A serpente é uma das peças mais concisas
de Nelson: escrita em um ato, estilisticamente construída com diálogos
secos e curtos, com duração de uma hora. O autor utiliza como recurso inédito
algumas quebras – chamadas de árias – entre os diálogos, momentos
em que a personagem deve ir ao proscênio e falar “para a platéia como o
tenor na ária”1, aos gritos (RODRIGUES, 1993a, p. 1113). Nessas árias, as
personagens revelam seus pensamentos e desejos, bem como rememoram
situações não encenadas para o público, mas que servem para contextualizar
a trama. Subentende-se que, com exceção da primeira ária de Lígia, todas as
outras não são ouvidas pelos personagens em cena, mas tão somente pela
plateia. Deste modo, Nelson quebra o que se chama comumente de quarta
parede – uma parede invisível que separa atores e plateia – e faz com que o
público torne-se cúmplice dos pensamentos mais íntimos das personagens.
Por outro lado, o clima de confidência que poderia ser criado com
essa cumplicidade parece não se realizar, pois quando Nelson Rodrigues indica
ao ator que este deve falar “como o tenor na ária”, aos gritos, ele rompe
com uma interpretação naturalista e cria um efeito de estranhamento que
beira o cômico. Reforça, assim, o caráter ambíguo da representação teatral
e não permite que o público se estabeleça num terreno confortável, uma
vez que, com isso, instaura uma atmosfera que conjuga, a um só tempo, o
estranho e o familiar.
1 Na publicação Nelson Rodrigues – Teatro completo: volume único (Rio de Janeiro,
1993a), utilizada como referência para o presente trabalho, todas as rubricas da peça estão escritas
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2. Alteridade imaginária e sexualidade em A Serpente
A peça inicia-se num apartamento de classe média, já apresentando
um conflito: Décio arruma sua mala para ir embora e separar-se da mulher,
Lígia. Esta começa a provocá-lo, tocando no assunto que mais o incomoda:
sua impotência sexual. Há um ano estão casados e o marido só tentou o ato
sexual três vezes, sem êxito. Décio reage e esbofeteia Lígia, humilhando-a
e fazendo-a afirmar que é uma puta. Por fim, proíbe-a de falar sobre sua
impotência com a “múmia” do pai e a “cretina” da irmã dela; bate-lhe novamente
e parte. Entra no quarto a irmã de Lígia, Guida.
Cabe dizer que as duas irmãs casaram-se juntas, no mesmo dia, na
mesma igreja; o pai deu-lhes um apartamento para que juntas continuassem,
com seus respectivos maridos. Os quartos das duas irmãs, contíguos, são
o principal espaço cênico da peça. Com isso, o autor cria um interessante
espaço topológico em que a parede que separa esses quartos potencializa
a pulsão invocante2, uma vez que o que se escuta e não se vê serve como
elemento fundamental do universo de fantasia de Lígia.
O pai, presente somente no discurso das personagens, é a única
referência familiar exterior que se apresenta com um pouco de consistência
– a mãe só é mencionada uma vez, na ária de Guida. No diálogo inicial da
peça, Décio diz à Lígia: “Pra que falar com teu pai? [...] Perde as ilusões sobre
teu pai. Teu pai é uma múmia, com todos os achaques das múmias” (RODRIGUES,
1993a, p. 1111). Mais adiante, a própria Lígia se convencerá disto.
Despreocupadamente, Guida quer saber o que houve; ao receber
a notícia da separação, surpreende-se pela irmã não ter lhe contado antes,
afinal ela não lhe esconde nada. Ledo engano: há um ano Lígia escondia
sua infelicidade conjugal e sustentava uma farsa, junto com Décio. Lígia
diz: “se parecíamos felizes, é porque somos dois cínicos” (RODRIGUES,
1993a, p. 1113). Guida espanta-se: habitando em quarto colado ao dela,
não percebera sua infelicidade! Lígia retruca que a irmã, “que não é múmia”
(RODRIGUES, 1993a, p. 1112) como o pai, tinha a obrigação de perceber que
algo não ia bem – afinal se ela ouvia todas as noites os gemidos de amor 2 Segundo Freud (1915-2004, p. 148) “a pulsão nos aparecerá como um conceito-limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que provêm do interior o corpo e alcançam a psique”. Proveniente da palavra alemã trieb, o conceito de pulsão abarca um amplo leque de sentidos, que vai desde uma “força que impele” ao “que é impelido”. Conforme esclarece o coordenador da tradução brasileira das obras de Freud, “trieb é a força responsável pelas necessidades, vontades, impulsos e desejos [...] e ao mesmo tempo é ela mesma o resultante desse processo, isto é, a representação psíquica da necessidade, da vontade [...] etc.” (FREUD, 1923-2007, p. 87, nota 97). As pulsões têm como meta a satisfação, porém seu objeto é variável; para Lacan, a pulsão invocante é aquela que, grosso modo, tem a voz como objeto.
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de Paulo e Guida, no mínimo esta deveria suspeitar do silêncio do quarto
contíguo. Lígia revela, então, o motivo factual de sua infelicidade: Décio
nunca foi homem para ela.
Perguntamo-nos, então, o que levou Lígia a fingir-se de feliz por
tanto tempo? Se Décio não tivesse se retirado desse pacto cínico e velado,
por quanto tempo ela continuaria a fingir-se de amada? Se a saída de Décio
deixa Lígia tão desestruturada, provavelmente é porque faz ruir a máscara
de mulher que ela havia criado e sustentado tão bem. Não é a toa que, para
ela, a irmã chega “no pior momento” (RODRIGUES, 1993a, p. 1112); pois é
exatamente quando ela está lançada ao vazio, atrapalhada com a feminilidade
que lhe havia sido possível construir.
Malvine Zalcberg (2003), ao abordar a invenção da feminilidade,
retoma o conceito de mascarada, abordando-o desde a perspectiva de Joan
Rivière (1920) até a formulação de Lacan. Para Rivière, “a feminilidade seria
sempre um disfarce, uma mascarada” (ZALCBERG, 2003, p. 183). Freud
(1923) já falara da primazia do falo, afirmando que a diferença entre a organização
genital infantil e a do adulto reside no fato de que, na infância,
as teorias sexuais pressupõem que homens e mulheres têm (ou vão ter) um
pênis. Lacan desenvolve esta ideia afirmando que, no inconsciente, não
existe um símbolo para a diferença sexual, ou seja, para o sexo feminino.
Zalcberg (2003, p. 184) acrescenta:
Para ele [Lacan] a mascarada oferece uma moldura a uma condição
de feminilidade da mulher. Ao cercar o que não existe – a feminilidade
como tal – a mascarada cria uma feminilidade possível. A
definição de mascarada como algo que esconde para melhor mostrar,
ilustra a divisão da mulher entre o que ela é e o que ela não é.
Se para a família Lígia sustentava sua feminilidade através da
imagem da felicidade conjugal, para Décio ela falava: “‘eu sou virgem’. [...] E,
no dia seguinte, dizia outra vez: ‘Continuo virgem’” (RODRIGUES, 1993a, p.
1122). Ao denominar-se diariamente como virgem, Lígia, ao invés de buscar
a satisfação de seu desejo sexual, reforçava cada vez mais um sentido de
pureza e inacessibilidade. Desta forma, ela furtava-se a ser objeto de gozo
sexual, satisfazendo-se em fazer o outro desejar.
Ao sustentar essa farsa, Lígia enveredou pela sua mascarada feminina,
constituindo para si um arremedo de feminilidade; por outro lado,
afastou de si a experiência da relação sexual. Ela optou por esperar pela
virilidade do marido, mantendo em suspenso seu desejo de ser mulher – a
expressão em destaque é utilizada em nossa cultura para representar uma
mulher iniciada sexualmente. Enquanto Lígia continuava virgem, Guida
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era “a mulher amada todos os dias” (RODRIGUESa, 1993, p. 1125), há um
ano. Todas as noites, ao lado de Décio, Lígia ouvia os gemidos da irmã e do
cunhado. Seria este gozo alheio que a fazia sustentar seu desejo no plano da
insatisfação? Com isso, Nelson expõe interessantes aspectos concernentes
à relação entre a histeria e os caminhos ofertados pela nossa cultura para
o tornar-se mulher. Podemos supor que o desejo de Lígia estava ao lado,
encarnado na cama da irmã, enquanto ela mesma gozava com os vestígios
sonoros do sexo alheio.
A esse propósito, chamamos a atenção para um traço peculiar da
estrutura histérica, por nós identificado na trama em foco, que seria observado
“quando o desejo do sujeito está sempre presente, mas sob reserva de
se fazer representar onde não está, delegando-se através do desejo do outro”
(DOR, 1991, p. 34, grifo do autor).
Após a revelação de Lígia, surgem as árias das personagens. A
primeira, de Lígia, é a única que se subentende ser ouvida pela outra personagem
em cena; também é a única em que se rememora uma cena vista pelo
público – a da briga entre Décio e Lígia. Além disso, ela diz: “eu guardei a
minha virgindade para o bem amado. E o tempo passando, e eu cada vez mais
virgem” (RODRIGUES, 1993a, p. 1113). Esta última oração nós dá a ideia de
uma virgindade que foi se acumulando a ponto de suplantar a personagem,
nela produzindo um efeito degradante e melancólico. A degradação pode ser
comprovada, ainda, na referida ária, quando Lígia conta que Décio a obrigou
a se denominar “puta”. Segue-se, de pronto, a ária de Guida:
Você foi sempre tudo para mim. Um dia eu te disse: “Vamos morrer
juntas?” E você respondeu: “Quero morrer contigo.” Saímos para
morrer. De repente eu disse: “Vamos esperar ainda.” E eu preferia
que todos morressem. Meu pai, minha mãe, menos você. E se você
morresse, eu também morreria. Mas tive medo, quando você
se apaixonou e quando eu me apaixonei (RODRIGUES, 1993a, p.
1114, grifo nosso).
Observa-se nessa fala a virulência do amor entre as duas irmãs;
expõe um fraterno impregnado de paixão. Indica também algo que, a nosso
ver, remete-se à constituição do eu no estádio do espelho e à sua reverberação
(alienada) na vida do sujeito. Se a morte de Lígia acarretaria também a
morte de Guida, é porque, para esta, a outra representa o sustentáculo de
sua própria imagem, sendo essa um importante elemento na constituição de
seu eu. Nadiá Ferreira nos ajuda a entender essa situação, quando, citando
Lacan, diz: “O eu é referente ao outro. O eu se constitui em relação ao outro.
Ele é o seu correlato. O nível no qual o outro é vivido situa exatamente o
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nível no qual, literalmente, o eu existe para o sujeito” (LACAN, 1979 apud
FERREIRA, 2009, p. 5).
Ao retornar de sua ária, Guida diz que Lígia não pode ficar só, ao
que a irmã retruca que já está nessa condição, afinal ela, Guida, tem Paulo.
Lígia diz: “Seu marido é tudo pra você. Eu não sou tudo para você. Ou sou?
GUIDA – Meu marido é tudo para mim. Você é tudo para mim” (RODRIGUES,
1993a, p. 1114). Revela-se, no discurso de Guida, a impossibilidade de perder
os objetos nos quais investe seu amor: ela quer conservar tudo, o amor
infantil e o adulto. Até o desfecho da peça, ela lutará por isso e, a nosso ver,
será este o principal motivo de sua desgraça. Lígia, por sua vez, mostra-se
esvaziada de amor – ela já não tem o olhar apaixonado e exclusivo da irmã,
para quem tudo representava.
Diante de Guida – plena na realização da feminilidade – só resta à
Lígia, em oposição à sua virgindade acumulada, o horror pela vida e a morte.
Jogar-se do 12º andar é a saída mencionada por Lígia. Essa ameaça faz Guida
atualizar o antigo pacto de amor e morte, prometendo se atirar com a irmã.
Mas Lígia não acredita, porque sabe que, para a outra, “o marido é muito
mais importante que a morte” (RODRIGUES, 1993a, p. 1114) – ela sabe, vê
e escuta. Com ódio, Lígia acusa a irmã de ser feliz com o marido desde o
início; ela diz: “quando te olhei na igreja, senti que a feliz eras tu. E senti
que amavas mais que eu, e que era mais amada do que eu” (RODRIGUES,
1993a, p. 1114). Desde quando Guida amava mais e era mais amada? Seria
somente Paulo o agente desse amor que ofuscava a existência de Lígia?
A revelação de Lígia toma outro rumo: não é Décio o culpado da
sua infelicidade; é Guida, a mais amada, a que o marido faz gozar todas as
noites. Lígia revela ainda que a irmã muitas vezes dizia ser “a mulher mais
feliz do mundo” (RODRIGUES, 1993a, p. 1114); para ela, só Guida podia ser
feliz, ela não. Guida defende-se das acusações, sintetizando a ideia exposta
na sua ária: “Lígia, nunca duas irmãs se amaram tanto” (RODRIGUES, 1993a,
p. 1115). Imediatamente Lígia precipita-se para a janela, ameaçando se jogar.
Aqui nos inquieta a sucessão da ameaça de suicídio à frase acima
destacada. O que fez Lígia querer jogar-se do 12º andar? O fato de ainda ser
virgem, ou melhor, de não poder-se dizer mulher? Ou o fato de não ser uma
mulher realizada como Guida? Ou, então, constatar que o amor pela irmã a
imobilizou na vida? Talvez estes possíveis motivos não sejam indissociáveis,
o que só ratifica a polissemia dessa trama. Ademais, eles possuem um ponto
em comum: a demanda de amor como garantia de existência para uma
mulher. Vale pontuar que a frase de Guida situa o amor das irmãs no tempo
passado (amaram), o que projeta Lígia num vazio ainda maior.
O medo de perder a irmã faz Guida lançar uma cartada decisiva
para a virada da trama. Ela pergunta: “quer ser feliz como eu, quer? [...] Te
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dou uma noite, minha noite. E você nunca mais [...] terá vontade de morrer”
(RODRIGUES, 1993a, p. 1115). Podemos arriscar que aqui se dá a sedução da
serpente, que faz a mulher recuar e ceder. Lígia desce da janela, sem saber
já está fisgada. Para salvá-la, Guida oferece seu marido. Lígia tenta entender
melhor – e Nelson aproveita para filosofar ao se utilizar de um jogo de
palavras acerca das relações particulares do homem e da mulher em relação
ao binômio amor e desejo:
LÍGIA – [...] Como uma noite, se ele não me olhou, não me sorriu,
não reteve a minha mão? E, de repente, acontece tudo entre nós?
E ele quer, sem amor, quer?
GUIDA – O homem deseja sem amor, a mulher deseja sem
amar (RODRIGUES, 1993a, p. 1115, grifo nosso).
O que Guida sabe, e busca ensinar à irmã, é que há uma diferença
“entre fazer-se amar, fazer-se desejar platonicamente e dar tesão” (SOLER,
1998, p. 240). Talvez Lígia tivesse ficado enclausurada no gozo de “fazer-se
desejar platonicamente”, de modo a furtar-se do gozo propriamente sexual.
A nosso ver, essa frase de Guida traz a ideia que desencadeia o desfecho
trágico da peça. Se é legítimo desejar sem amar, a trama mostrará que desse
encontro sexual pode nascer um amor potente e destrutivo. Acerca dessa
frase, vale ainda retomar uma afirmação de Nelson, publicada em uma de
suas crônicas: “Eu diria que a nossa tragédia começa quando separamos o
sexo do amor. [...] Os nossos males têm quase sempre esta origem fatal: – o
sexo sem amor” (RODRIGUES, 1993b, p. 188).
A cena muda bruscamente: Lígia já está no quarto de Guida e Paulo.
Ela foi só para dizer que eles não vão fazer nada, que essa ideia “é uma
loucura”, porque “pior que o irmão é o cunhado” (RODRIGUES, 1993a, p.
1116). Paulo despista, lança-se ao trabalho de conquistar Lígia, que resiste
sem muita convicção. O jogo de sedução termina com Paulo imobilizando
a cunhada e virando-se, de modo a pôr a cabeça entre suas pernas. Ela diz:
“aquilo, não deixo! É um incesto!”; Paulo ordena-lhe que se cale, porque
“Guida está ouvindo” (RODRIGUES, 1993a, p. 1117), no quarto ao lado. De
que incesto se trata aí? A quem Paulo substituiria, ao modo metonímico,
fazendo “aquilo” com ela?
É o sexo oral, protagonizado por Paulo, que se configura como
incesto. Tal se dá na medida em que o cunhado, enquanto objeto de desejo,
atualiza Guida na fantasia de Lígia – isto será confirmado na segunda
ária de Lígia. Supomos que, ao relacionar-se sexualmente com Paulo, Lígia
concentra nessa ação uma série de significados e lucros: relaciona-se com
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a irmã, por deslocamento e condensação; põe-se no lugar da irmã, mulher
representante de um eu-ideal; e ainda rouba-lhe o homem amado, colocando-
-se em posição superior.
Através da rubrica, Nelson sugere o deslocamento da cena para
Guida, em detrimento do casal.
(Luz sobre Guida na cama de Lígia. Guida revira-se na cama.
Grito de Lígia. Guida levanta-se. Em pé, de braços abertos, Guida
esfrega-se nas paredes. Grito de Lígia. Guida cai de joelhos. Tem
seu orgasmo. Guida está de quatro, rodando e gemendo grosso.
Luz apaga e acende, como se fosse a passagem do tempo.) (RODRIGUES,
1993a, p. 1117).
A rubrica nos apresenta Guida em posição selvagem: os gritos de
Lígia conduzem-na a um orgasmo animalesco. O que, nessa situação, instiga
o seu desejo sexual? Em nome de quem ela goza: Paulo e/ou Lígia? Por
que a posse sexual de sua irmã por seu marido a conduz a tão intenso gozo
sexual? Essas questões nos remetem ao fato de que no inconsciente não
existe contradição nem negação: nele, os representantes da pulsão coexistem
lado a lado e podem estabelecer ligações à revelia de suas contradições e
oposições conscientes. A trama de Nelson, relativa a esse triangulo amoroso,
mostra-nos o quanto determinadas representações atualizam o acontecer
psíquico inconsciente nos conflitos e experiências vividas pelas personagens.
Nelson, ao edificar a referida triangulação, nos dá indícios do
seguinte tipo de identificação:
Todo sonho, sintoma ou fantasia histéricos, condensa e atualiza
uma identificação tríplice: identificação com o objeto desejado,
com o objeto desejante e, por fim, com o objeto de gozo dos dois
amantes. [...] Numa palavra, o objeto central do desejo da histérica
não é um objeto preciso, mas o elo, o intervalo que liga entre si
os parceiros do casal fantasiado (NASIO, 1989, p. 110 et seq.).
A nosso ver, é a partir dessa tríplice identificação que Guida goza
– o mesmo pode ser dito quanto ao gozo de Lígia com o cunhado. Aliás, na
cena proposta pela rubrica, Guida experimenta gozar do lugar que Lígia
outrora gozara. A diferença é que, se Lígia gozava ouvindo gemidos, Guida
goza ouvindo gritos – e essa impressão sonora ficará marcada até o fim
de seus dias. Talvez, em seu íntimo, ela se perguntasse: “se Lígia grita é
por que goza mais, mais do que eu?” A rivalidade entre essas irmãs parece
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colocar em jogo um querer gozar mais que o outro, como garantia de amor
e consistência para o “ser” mulher.
Cabe lembrar que Freud chamara a atenção para a presença das
fantasias primitivas no psiquismo humano – observar as relações sexuais
dos pais, através do olhar ou da audição, seria uma delas. Para Freud (1917,
p. 373), estas fantasias “constituem um acervo filogenético. Nelas o indivíduo
se conecta, além de sua própria experiência, com a experiência primeva
naqueles pontos em que sua experiência foi demasiado rudimentar”. Assim,
o caráter grotesco do orgasmo de Guida sugere sua possível relação com uma
fantasia primitiva desse tipo.
A cena seguinte, após a noite de amor entre os cunhados, começa
com Lígia retornando ao seu quarto e deparando-se com Guida, que quer
saber o que aconteceu: ela pressiona, anseia pela fidelidade e pelo arrependimento
da irmã, que primeiro se esquiva de falar, mas termina enaltecendo
a atitude de Guida. Nelson quebra a cena com a segunda ária de Lígia, na
qual aponta indícios não só de uma fantasia incestuosa (e bissexual) da parte
desta personagem, como também de um tipo de sujeito que só se realiza
sexual e amorosamente se estiver inserida, na fantasia, em um triângulo.
Ela diz: “Quando entrei no quarto, foi como se Guida me levasse pela mão.
E o meu medo era o incesto. O cunhado é assim como o irmão. E foi como
se Guida me despisse” (RODRIGUES, 1993a, p. 1117).
Ao retornar da ária, Lígia tenta ocultar seus sentimentos e lança
uma semente de discórdia: Paulo poderá contar tudo à Guida, “menos uma
coisa”. Guida diz, “a mim, ele conta tudo”, Lígia retruca “essa coisa, não”
(RODRIGUES, 1993a, p. 1118). (Lembremos que, no início da peça, Guida
afirmara que Ligia não escondia nada dela). Nesse diálogo, Lígia destitui
a irmã de seu lugar e mostra-lhe estar, agora, em uma posição privilegiada
em relação a ela. Insinua ainda que Guida já não domina àqueles a quem
ama. Por fim, admite em “súbita euforia”: “o que eu senti foi tudo, a vida e
a morte. Agora posso viver e posso morrer” (RODRIGUES, 1993a, p. 1118).
Posteriormente Lígia falará a Paulo que, se antes só pensava em morte, agora
ela quer viver e quer ser amada.
Após a cena de Lígia e Guida, segue o encontro desta com o marido,
extenuado pela noite de amor. Em sua ânsia de controle, oscila entre
pedir a Paulo que não lhe diga nada e investigar a magnitude do seu envolvimento
com a irmã. Aqui, Nelson indica uma ação que se repetirá depois:
Guida beija Paulo para experimentar o gosto de sua boca. Sente “gosto de
sexo” – o da sua irmã.
A menção ao sexo oral aparecerá ainda na cena final, no clímax
da desilusão de Guida, que afirma: “você fez com a mulher de uma noite o
que só podia fazer comigo. [...] Maldito esse beijo com gosto de sexo. E essa
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cínica do lado ouvindo tudo, a cínica!” (RODRIGUES, 1993a, p. 1130). Amor
e rivalidade são atualizados na fala de Guida, onde o uso do significante
“cínica” é empregado em substituição ao de “Lígia”.
A primeira cena entre Paulo e Guida termina drasticamente. Após
reconciliar-se com Paulo, em dócil postura, Guida afirma que Lígia vai morrer.
Diante da recusa de tal ideia pelo seu marido, ela revolta-se e o proíbe
de qualquer tipo de contato com a irmã, decretando que quando o marido
estiver fora, a irmã estará com ela, em casa. Esse decreto relaciona-se com
o desejo de reconquistar sua posição anterior, ao mesmo tempo em que atiça
uma fantasia que está atrelada ao ato sexual ocorrido entre seu marido e a
outra, e que passa a ser um suporte de seu desejo aí implícito.
A partir do desvirginamento de Lígia, Guida trava uma luta constante
para fazer as coisas voltarem a ser o que eram antes – já não será
possível. A nosso ver, a imagem sugerida pelo autor é a da serpente mordendo
o próprio rabo e envenenando-se, numa circularidade mórbida. Depois da
fatídica noite, os rumos das duas irmãs se invertem: é Guida quem passa a
ocupar o lugar de não-mulher, de mal-amada, de insatisfeita sexualmente,
pois Paulo já não conseguirá desejá-la e nem tocá-la, colocando-a numa
posição de sublime e santificada – a cena acima descrita termina com Paulo
dizendo, “só eu sei que você é uma santa” (RODRIGUES, 1993a, p. 1120).
Numa cena posterior, Paulo proibirá Lígia de chamar a irmã de
mulher. Guida, por sua vez, confirmará seu novo lugar na casa, já no final
da peça, dizendo: “Estou esperando a tua mulher, a mulher que eu deixei
de ser. [...] Eu não sou nada! Sabe o que eu sou? Sou tua cunhada!” (RODRIGUES,
1993a, p. 1128).
Dissociando o seu amor de seu desejo, Paulo destina seu amor à
Guida e o seu desejo à Lígia, fazendo-se o tipo de macho que a nossa cultura
propaga e que, segundo Nelson, é o sonho de “toda mulher”: o cafajeste – ou
canalha, como o próprio Paulo se denomina em sua ária. Com isso encena a
fantasia masculina segundo a qual “mulher gosta de sofrer”, ou mesmo de
“apanhar”, conforme diria o dramaturgo em suas entrevistas.
Terminado o primeiro diálogo entre Guida e Paulo, reaparece o
ex-marido de Lígia, Décio, em colóquio sensual com a lavadeira de sua ex-
-casa, a Crioula “das ventas triunfais” que milagrosamente o curou de sua
impotência. Décio tem duas breves cenas com a Crioula; entre elas há a ária
de Décio, na qual ele discorre sobre a noite de núpcias, sobre sua angústia
de homem impotente e de como se curou ao ver a Crioula. Nessa ária ele se
refere ao sexo de Lígia como “uma orquídea deitada”, em oposição à caracterização
que faz da Crioula, com os “peitos, a barriga, as nádegas e as ventas
triunfais” (RODRIGUES, 1993a, p. 1121). Somente as carnes expostas da
Crioula e os buracos escancarados de seu nariz foram capazes de despertar
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a virilidade de Décio. Por outro lado, a comparação do sexo de Lígia com
uma orquídea faz dele algo sublime, de uma beleza rara e contemplativa, ao
contrário da posição rebaixada da Crioula, de carnes vulgarmente expostas.
Décio ainda retorna ao quarto de Lígia com o objetivo de deflorá-
-la, cena que agrava o conflito entre as duas irmãs, pois Paulo lança-se em
defesa da cunhada, como se fosse ele o marido. As irmãs discutem e Guida
proíbe Lígia de ter qualquer contato com Paulo. Ela afirma que nem Lígia,
nem Paulo a conhecem; que ela própria não se conhecia – acrescenta, ainda,
que só agora se conhece, pois se a irmã quiser mais do que já teve, ela
a matará ou, então, ao único homem que amou. Guida mostra que o medo
de perder o amor de Paulo levou-a a descobrir uma obscura face do seu ser.
Cena seguinte: Guida e Paulo estão no quarto. Ela o percebe estranho,
desconhecido; reclama que há uma semana Lígia esteve com ele e
que, desde então, o marido não a procurou mais sexualmente. Paulo tenta
puxá-la para seus braços, mas ela o rejeita pela primeira vez. Expressa em
sua queixa: “Eu quero que você não se esqueça que eu sou a mulher amada
todos os dias. E, de repente, você passa uma semana [...]” (RODRIGUES,
1993a, p. 1125). Paulo a chama e ela o rejeita pela segunda vez – não quer
um amor que precisou suplicar. Em resposta, Paulo afirma que nunca um
homem desejou tanto uma mulher como ele a deseja. Guida se deixa convencer
e desiste, abruptamente, de vigiar o marido e a irmã.
Segue-se, então, o reencontro de Paulo e Lígia – foi Guida quem a
estimulou a sair de casa. Neste reencontro os diálogos oscilam entre declarações
de amor e a mudança repentina de Guida – ela está doce com Lígia e
até lhe pediu perdão. Mas Lígia não se ilude, pois a irmã sorria para ela com
ódio no olhar. A todo instante, Lígia atualiza a presença de Guida, através do
medo de ser assassinada por ela, evidenciando com isso a ambivalência entre
amor e ódio – própria ao tipo de identificação que manifesta ter para com a
irmã, após ter sido possuída pelo cunhado. Essa mesma posição pode ser vista
quando Lígia coloca Paulo numa situação delicada, ao perguntar: “Se Guida
me quisesse matar, você a mataria antes?” (RODRIGUES, 1993a, p. 1126).
Lígia continua com suas perguntas, quer saber o que ela representa
para ele, de quem ele gosta mais. Paulo só responde “te amo” e Lígia,
satisfeita, desiste de saber quem seria a sua preferida.
O cunhado pergunta se Lígia morreria com ele – questão que, na
juventude, Guida dirigiu a Lígia. Apesar de responder positivamente, a opção
de Lígia pela vida é categórica e exclui a irmã: “meu anjo, eu morreria mil
vezes contigo. Mas se alguém tem que morrer, você sabe quem é? É Guida
e não eu” (RODRIGUES, 1993a, p. 1126). Sutilmente, incute-lhe a ideia de
que a irmã precisa ser morta. Este, pensamos, é o seu instante de serpente
sedutora. Sua face de mulher é mostrada na trama a partir do momento em
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que o seu reconhecimento como tal depende de sua radical separação de
Guida, o que somente seu assassinato por Paulo poderia assegurar.
Aqui cabe um parêntese para pontuarmos a conjunção amor e
morte, presente nesta obra de Nelson. Tanto Guida quanto Paulo propõem à
Lígia, em momentos distintos, um pacto de morte como garantia de continuidade
do amor. Em diversos escritos de Nelson, encontramos o seu fascínio
pelo pacto de morte como expressão do amor eterno. Ao final de uma de
suas crônicas de memórias, o dramaturgo afirma: “Ainda na Escola Prudente
de Morais, eu li, certa vez, no jornal, o pacto de morte de um rapaz e uma
menina. E pensei então, por outras palavras: quem nunca morreu com o ser
amado, não sabe o que é o amor e é um impotente da alma” (RODRIGUES,
1993b, p. 144).
No segundo encontro dos cunhados, Lígia beija por três vezes a
mão de Paulo – ação que ocorre quando o cunhado insinua amar-lhe mais
do que à Guida. O último beijo na mão acontece quando ela pergunta-lhe
se ele e Guida “têm se amado muito” (RODRIGUES, 1993a, p. 1127), ao que
Paulo responde negativamente, pois não consegue mais desejar Guida. Lígia,
então, diz: “Quero tanto ser tua outra vez. Pode fazer tudo. Até aquilo eu
deixo fazer” (RODRIGUES, 1993a, p. 1127, grifo nosso) – o que no primeiro
encontro fora caracterizado por Lígia como prática incestuosa e proibida,
passa a ser objeto de desejo dessa personagem. A cena termina com os dois
se dirigindo à mata para se amarem.
Ao retornar ao apartamento, Paulo encontra a esposa transtornada
pelo ciúme; ao invés de beijá-la na boca, como de costume, ele a beija na
testa, o que só a irrita mais. Ele finge nada ter acontecido, mas ela insiste
em afirmar que o marido e a irmã encontraram-se. Guida ouve Lígia entrar
no apartamento e dirige-se ao quarto da irmã, que tenta adiar a conversa,
mas Guida recusa-se a sair. Como se tivesse assistido à cena entre os dois,
diz: “Eu sei que vocês não conversaram apenas. Conheço meu marido, minha
irmã não conheço, mas meu marido, conheço. Também te conheço pelos
gritos” (RODRIGUES, 1993a, p. 1128, grifo nosso) – nesse trecho é manifesta
a sugestão do emprego ambivalente do significante “conheço”, uma vez
que insinua o seu sentido bíblico de conjunção carnal, o que teria se dado
entre ela e a irmã mediado pelos gritos dessa ao ser possuída por Paulo. É
intrigante, nesse diálogo, que Guida se refere ao lugar do encontro dos dois,
ao que lá aconteceu e, até, a trechos da conversa mantida entre eles – mas,
ainda assim, pressiona a irmã até que esta confirme o que ela disse.
Nelson nos faz antever, novamente, uma situação ambígua: Guida
intuiu, imaginou ou presenciou a cena? Seja qual for a resposta que a
encenação ou o público possa se atribuir a isso, é interessante notar uma
outra ambiguidade aí presente: a do desejo de Guida. Apesar de sofrer com a
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traição do marido e da irmã, foi ela própria quem os estimulou a sair; quem,
pela segunda vez, possibilitou o encontro sexual entre os dois.
Depois de obter a confissão da irmã, Guida é levada por Paulo para
o seu quarto. Nos diálogos seguintes, Guida pergunta três vezes se Paulo a
ama. Nas duas primeiras vezes, Paulo responde afirmativamente e devolve a
pergunta à esposa, que se nega a responder. Ela afirma só importar o amor
dele, não o dela, dando pistas do seu amor ser do tipo que se sustenta em
receber, não em doar. Nessa cena, os dois acabam beijando-se com paixão.
Ela interrompe o beijo, pergunta se ele e a irmã se beijaram assim e fala do
gosto de sexo na boca do marido.
Guida já não quer mais a prova do amor de Paulo e o pressiona
para que ele confesse a verdade. Paulo confirma o encontro com a cunhada
e ela, então, decreta que a partir dali eles não mais dormirão na mesma
cama. Subentende-se que eles permanecerão juntos, mas que ele não será
mais seu homem e nem de Lígia. Guida, assim, parece decretar a morte do
desejo para o marido.
Paulo então vai para a janela, senta-se no peitoril, ela se assusta,
não quer que ele se suicide. Paulo chama Guida para segurá-lo e pergunta se
ela o mataria. Ela responde “alto para Lígia ouvir. [...] Eu não mataria você,
nunca. Lígia, sim, Lígia eu mataria” (RODRIGUES, 1993a, p. 1130). Paulo
convida Guida para sentar-se com ele na janela, ela aceita – ao seu lado não
tem medo de nada. Ele pergunta: se fosse Lígia sentada com ele na janela,
e não Guida, ele devia empurrar? “GUIDA - Devia empurrar. PAULO - E não
te espantaria a morte de tua irmã? GUIDA – Me tira daqui. Tenho medo”
(RODRIGUES, 1993a, p. 1130 et seq.). Paulo empurra Guida pela janela.
Lígia entra, assustada pelo grito da irmã:
LÍGIA (desatinada) – Que foi isso?
PAULO – Guida caiu.
LÍGIA – Foi você. [...]
PAULO (desesperado) – Desce comigo. Temos que dizer que foi
loucura – um acesso de loucura.
LÍGIA (frenética) – Mas eu tenho medo de não chorar!
PAULO – Não grita, pelo amor de Deus, não grita! Pensa na tua
culpa e chora!
LÍGIA (aos soluços) – Eu sei que não vou chorar!
PAULO – Vem!
(Paulo quer segurá-la. Ela se desprende, feroz.)
LÍGIA – Não me toque! Eu não sou culpada! Foi você que matou!
Assassino!
(Lígia corre para a janela.)
LÍGIA – O assassino está aqui! É meu cunhado! Assassino! Assassino!
Assassino! (RODRIGUES, 1993a, p. 1131).
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Diante da atitude contraditória de Lígia, que se nega a ser cúmplice
de uma ação que ela mesma incentivou, perguntamo-nos: o que realmente
estava em jogo na sua relação com Paulo? Se através dele ela pôde enfim
ocupar uma posição de mulher, porque ela não se felicitou com o fato dele
ter sacrificado a esposa para ficar com ela?
Esta peça nos remete ao modo singular como se dá o tornar-se
mulher, em cada uma das personagens, bem como nos indica que a condição
disso, para ambas, é a construção de uma identificação feminina que põe
em cena, simultaneamente, o lugar a que a mulher é remetida pelo homem
e o lugar ocupado pela “outra” nessa relação. Parece-nos que Lígia só pode
tornar-se mulher na medida em que seu cunhado a remete à Guida, ou seja,
ao mesmo tempo em que se coloca no lugar da outra, o faz tomando para
si o homem dessa. Guida, por sua vez, só é mulher quando Lígia não o é.
E mais: como aponta o desfecho da peça, é preciso que as duas estejam em
cena, ainda que escutando por detrás da parede, para que uma ou outra
possa ser mulher. A morte de uma delas parece quebrar o sustentáculo
dessa estranha forma de identificação. Um espelho, então, se estilhaça. O
assassinato de Guida não pode ser tolerado por Lígia, pois seria a clivagem
de sua própria imagem.
É importante ressaltar que a mãe é subtraída da vida das filhas,
como se sequer tivesse existido para elas. O pai é uma “múmia”, que não
as separou e que acreditava serem as duas igualmente felizes em seus casamentos,
sem perceber que a felicidade de uma delas não se realizava de fato.
Porém, para as duas irmãs, era um pai a quem Décio devia satisfações para
justificar a separação. Já para Décio, esse pai era depositário de “ilusões” por
parte da ex-esposa. Que ilusões seriam essas? Ou melhor: que ilusões uma
filha pode cultivar em relação ao seu pai? Retomemos Freud, para darmos
um melhor tratamento a essa questão.
Para Freud (1925) a descoberta do pênis, enquanto o que engendra
a constatação da distinção anatômica entre os sexos, coloca a menina diante
da castração – a sua, a da mãe e das outras mulheres. A ferida narcísica que
a castração representa para a menina configura-se, então, como o impulso
fundamental para o rompimento do vínculo mãe e filha – a primeira ligação
de amor para as crianças de ambos os sexos. Segundo Freud, esse vínculo
entre filha e mãe termina em ódio.
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Freud (1925, p. 281) afirma, ainda, que a comparação entre o pênis
e o seu equivalente no corpo feminino, o clitóris, desencadeia na menina a
inveja do pênis: “ela viu, sabe que não tem e quer tê-lo”. Essa inveja leva a
menina a ingressar no Complexo de Édipo: o olhar da menina se volta para o
pai enquanto objeto de desejo, como sendo aquele que supostamente detém
o que falta à mãe e à própria menina – o falo. A entrada no Édipo, para uma
menina, só se efetiva se, através do que Freud (1933, p. 128) chama de uma
primitiva equivalência simbólica, “o desejo do pênis for substituído pelo desejo
de um bebê”– se o pai supriu a falta da mãe dando-lhe um “pênis-bebê”, pode
fazer o mesmo com ela. Esta é a primeira ilusão que uma filha alimenta em
relação ao seu pai. À saída do Édipo, ela destinará essa ilusão a outro homem,
esperando receber dele o substituto do pênis. Para Freud (1933), essa é a
linha de desenvolvimento que conduz à “feminilidade normal”. Freud (1933,
p. 126) traçara ainda duas outras vias possíveis para uma menina, diante da
castração: “uma conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à modificação
do caráter no sentido de um complexo de masculinidade”.
Segundo Colette Soler (SOLER, 1998, p. 241), “a verdadeira mulher,
para Freud, não renuncia o pênis. Ela o espera do homem sob a forma de
seu amor, do filho que ele lhe dá e também do gozo do órgão.” Soler afirma
ainda que Lacan difere de Freud, na medida em que não toma como condição
obrigatória para a feminilidade a passagem pela castração e, consequentemente,
a inscrição das mulheres na relação sexual. Soler acrescenta que
essa inscrição pode ocorrer de diversos modos; ela diferencia o modo mulher
do modo histérico de se relacionar com o homem. Consoante esta autora,
para Lacan a “posição-mulher é querer gozar tanto quanto o homem deseja”
(SOLER, 1998, p. 243).
Retomando a trama d’A serpente, podemos dizer que até a noite do
desvirginamento de Lígia, Guida ocupava essa “posição-mulher”, inscrevendo-
se na relação sexual, segundo seus próprios dizeres, como “a mais feliz
das mulheres”, “a mulher amada todas as noites” (RODRIGUES, 1993a, p.
1124 et seq.). O seu desejo de mulher não passa pela maternidade, mas pelo
sentir-se amada e desejada pelo marido. Até a revelação de Lígia, acerca da
impotência de Décio, Guida acreditava que a irmã também era feliz como
mulher e que seu marido era viril. Quando cai a máscara, Lígia revela que
o amor pela irmã transformara-se em inveja e ódio: inveja porque a outra
gozava e era mais amada; ódio porque a irmã já não lhe dedicava mais a
exclusividade do seu amor.
A noite de sexo entre os cunhados é um divisor de águas nesta
trama, pois a partir dela as posições das irmãs se invertem: Guida é arrebatada
de seu lugar de mulher da casa, enquanto Lígia alardeia seu gozo de
Paulo. Porém, Lígia não ocupa de todo a posição que Guida outrora ocupara:
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nos dez dias que Guida passa sem ser amada sexualmente, Lígia também
não goza da parceria sexual de Paulo. Ela continua a gozar de uma insatisfação,
dessa vez a de Guida. Em manifesta posição histérica, Lígia, como
diria Soler (1998, p. 243), “goza de ser objeto causa de insatisfação”. É o
que mostra a cena em que ela beija a mão do cunhado, enternecida por ele
não mais desejar a irmã. Ela goza tanto por sentir-se amada, objeto precioso
para Paulo, quanto por fazer a irmã sofrer de insatisfação. Não é a toa que,
quando Guida morre, ela se retira da parceria com Paulo, como se seu desejo
não estivesse implicado naquela morte. Afinal, Lígia não queria mesmo
a morte da irmã; sem Guida, como ela poderia sustentar uma imagem de
mulher como a que edifica nesse drama?
É importante atentarmos, por último, para um ponto que consideramos
fundamental: a ênfase, presente nessa dramaturgia, na importância
do amor para a afirmação da feminilidade. Antes da iniciação sexual de
Lígia, é o amor que serve de suporte para qualificar Guida de mulher; depois
é o medo de perder o amor que a faz conhecer outra dentro de si, a que a
levará ao abismo da morte. Lígia, por sua vez, antes de conhecer o prazer,
apresenta-se sem consistência de mulher, suplantada pela própria virgindade,
sufocada pela máscara de feminilidade que ela erigiu e sustentou, junto com
Décio. Se antes de seu encontro sexual com Paulo ela só pensava em morte,
depois ela quer viver e ser amada.
À guisa de conclusão, podemos dizer que o discurso das personagens
encena três tipos de amor: 1) o amor fraterno e juvenil das duas irmãs;
2) o amor idealizado de Décio por Lígia; e 3) o amor sensual (ou carnal)
vivido entre Paulo e Guida e, posteriormente, entre Paulo e Lígia – carnal
também o idílio entre Décio e a Crioula, mas não amor.
O primeiro tipo só aparece no discurso de Guida, na ária em que
afirma que a irmã foi sempre tudo para ela. Esse “tudo” se repetirá acrescido
de um a mais quando Guida diz que a irmã e o marido são tudo para ela.
Podemos supor que, na adolescência, o amor de Guida dava consistência à
Lígia no seu caminho para a feminilidade; ao mesmo tempo em que Guida
cultuava Lígia como eu-ideal, alimentava-se dele para construir sua própria
identidade de jovem mulher.
Lembremos que, no caminho da feminilidade, a passagem do Édipo
para a escolha objetal não ocorre sem complexidade. A identificação masculina
oferecida pelo pai não é suficiente para a identificação da menina em
direção ao tornar-se mulher. Ao sair do Édipo, ela continuará sua busca por
uma identificação feminina; “esta só poderá encontrar junto à mãe, mulher
como ela” (ZALCBERG, 2003, p. 15).
Porém, no discurso dessas irmãs, a mãe é sobremodo ausente, o
que nos leva a crer que o tipo de relação imaginária vivida por elas teria sido
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o suporte da construção de suas imagens de mulher. Imagens que, marcadas
pela polaridade “amor – ódio/inveja”, revelaram-se frágeis, levando com
que – em momentos distintos – ambas deparassem sua frágil consistência.
Supomos, ainda, que o amor entre essas irmãs teria sido soerguido por sobre
o mesmo terreno ardiloso daquele que dá lugar à relação entre mãe e filha,
da qual pouco se pode falar dado seu caráter primitivo.
REFERÊNCIAS
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NASIO, Juan David. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
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RODRIGUES, Nelson. Nelson Rodrigues – Teatro completo: volume único. Organização geral e
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ZALCBERG, Malvine. A relação mãe e filha. 10. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
Submetido em 31/07/2010
Aceito Em 22/01/2011
Fonte: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/letras/article/view/25087/16783
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