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A cozinha era o
melhor lugar. De manhã, depois do café com leite pão e manteiga,
cada um ia para um lugar diferente. Era a hora da separação. O que era muito
bom. À noite todos nos encontrávamos de novo na cozinha, o que era melhor
ainda.
O
fogão de lenha aceso era um altar. A gente adorava, sem saber. O fogo. A lenha
queimava, perfumando o ar com o cheiro das resinas que a madeira chorava
através de suas gretas. E de repente voavam fagulhas estalando, pequenos fogos
de artifício. O fogo avermelhava os rostos. A prosa era sempre sobre coisas de
antigamente que todos já conheciam. “Pai, conta daquela vez que, pra visitar
a mamãe, você atravessou a enchente do rio num tacho do engenho de cana
puxado por uma corda...” A conversa era só uma desculpa para estar juntos.
A conversa era uma continuação das mãos. As palavras tinham carne. Na
sala de visitas, lugar de cadeiras em ângulo reto, o silêncio criava incômodo.
Não podia ser. O vazio era o nada. Silêncio seria falta de educação com as
visitas. Mas na cozinha, diante do fogo, o silêncio era bem-vindo. Só
contemplar o fogo já bastava. Era um silêncio carnudo, cheio de ser, tranquilo
e feliz. O fogo incendiava a imaginação. Um espaço com um fogo aceso é um
espaço aconchegante. As sombras não param. Movem-se ao sabor da dança das
chamas. O fogo tranqüiliza a alma, espanta os medos. Faz lugar para os
pensamentos vagabundos que não querem nada.
A
chapa quente do fogão era lugar para uma cafeteira de ágata. Quando não o café,
um chá de folha de laranjeira. Minha amiga Maria Alice, nascida em Mossâmedes,
Goiás, viveu a cozinha como eu vivi. Contou-me que quando era mais jovem
propunha um negócio a Deus: ela trocaria um ano de sua vida agora por uma única
noite na cozinha de sua casa. Toda noite era igual. Ela conta: “A mãe dizia: ‘Vou
é lá fora apanhar umas folhas de laranjeira prá fazer um chá pra nós...’ O
pai advertia: ‘Mulher, você vai é ficar estuporada. Está com a cara quente
do calor do fogo e vai sair na friagem? Vai acabar de boca torta...’ Ela
nunca seguiu a advertência do marido e nunca ficou de boca torta.
Sobre
o fogo uma panela de ferro coberta com uma tampa de lata de óleo de 18 litros , com brasas em cima. Dentro da
panela, um “bolo de panela”. É preciso dizer que é “bolo de panela”
para diferenciar dos outros, que são de forno. Bolo de panela é bolo de pobre
que não tem forno. As brasas na lata são para assar o topo do bolo. De fubá,
com pedacinhos de queijo Minas. A tecnologia não era perfeita. Um momento de
distração e a brasas queimavam a crosta. Mas esses pedaços queimados eram mais
gostosos. A manteiga escorria no bolo quente. A Tofa cuidava do fogo, cuidava
do café, cuidava do bolo de panela. Às vezes, ao invés de bolo de panela era
pipoca. Podia ser que nos assentássemos à volta da mesa nos bancos compridos e
se usasse o tempo para escolher feijão ou debulhar milho de pipoca para o dia
seguinte. Nas noites de chuva os pingos das goteiras tocavam música nas panelas
espalhadas pelo chão. Meu pai gostava da música das goteiras. Ele dizia que
elas o faziam dormir.
Nas
noites de julho, muito frio, a gente se assentava à volta de um
tacho de cobre cheio de brasas e punha os pés nos pauzinhos dos tamboretes, pra
quentar fogo. Apagava-se a luz e os rostos apareciam vermelhos sobre um fundo
escuro. Os pintores flamengos gostavam desse jogo de vermelho e negro.
De
noite a cozinha era um lugar macio, de ficar quieto, fazendo nada, só
gozando... Gozando a dança vermelha das chamas, o cheiro das resinas, o
barulhinho do fogo crepitando, o gosto bom do café com bolo. Era uma
festa para os sentidos tranqüilos. Estávamos livres da compulsão por fazer.
Parafraseado Bachelard: “Quer ficar tranquilo? Contemple calmamente a chama de
um fogão de lenha que faz o seu trabalho de luz e calor...”
De
dia a cozinha era outra coisa. Virava oficina de alquimista, lugar onde se
processavam grandes transformações na matéria. O fogo fazia o duro ficar mole:
a mandioca, a batata, o arroz, a carne. Fazia o mole ficar duro: o ovo cozido,
o pé de moleque, rapadura com amendoim. A rapadura mesma era um líquido que o
fogo transformara em sólido.
O fogo também fazia ferver a meleca das goiabas
partidas até transformá-las em pastas endurecidas que se guardavam m caixas. O
fogo fazia o nojento virar sabão: aquelas muxibas e sebos de carne de vaca,
ajuntados debaixo do fogão, misturadas com decoada, tudo derretido junto num
tacho de cobre vermelho, virava sabão preto que, depois de pronto, era amassado
em bolas do tamanho de duas conchas de mão e amarrados artisticamente com
palha de milho. Decoada faz-se assim: as cinzas do fogão, depois de purificadas
de pedacinhos de carvão por meio de uma peneira, eram colocadas dentro de uma
lata de óleo grande, não sem antes fazer três furinhos no fundo. A seguir a
cinza era pilada até ficar dura como pedra. Colocava-se então a lata sobre três
tijolos, debaixo dos furos um pires, e derramava-se água na cinza, cada dia só um
pouquinho. A água era filtrada através da cinza e saia no pires como um líquido
da cor de café. Esse líquido era a decoada que era misturada à nojeira das
muxibas e sebos para produzir o delicado sabão preto, muito bom para a pele. Me
disseram que a tal decoada continha potássio. Mas ninguém sabia o que era
potássio! Vejam! Eles sabiam sem saber, mais do que nós! Conheciam o poder
daquele líquido sem nome científico. Enquanto que nós conhecemos o nome
científico mas nada sabemos sobre o seu poder. Eu descobri, numa aldeia
histórica nos Estados Unidos, que era assim que os Pilgrim Fathers faziam
sabão. Do jeito como a gente fazia, lá em Minas. Fazia o sólido
virar gás: a lenha, as cascas de laranja secas, penduradas num varal de arame
sobre o fogão: pegavam fogo com fúria!
Eu
me metia na cozinha não por interesses culinários mas por interesses técnicos.
O fogo me ajudava a fazer brinquedos. Para colar o papel de seda dos papagaios
eu fazia grude, mistura de polvilho com água numa latinha vazia de massa de tomate
sobre a chapa, mexendo sempre para não empelotar. Custou-me muitos experimentos
para aprender a técnica de fazer grude sem pelotas. Para fazer furos numa
tábua, sem arco de pua, o jeito era aquecer um espeto redondo até ficar em brasa. Aí enfiava-se o
espeto incandescente no lugar do furo. A madeira pretejava, soltava fumaça, o
espeto entrava até varar. Peso para linha de pescar se fazia
derretendo-se alguns tubos de dentifrício ( esse era o nome da pasta dental...)
que eram de chumbo. Como já disse, o fogo tem o poder de transformar o duro em líquido. Aí
derramava-se o chumbo derretido num buraquinho cônico feito num canto do rabo
do fogão. Antes que o chumbo endurecesse eu enfiava nele uma varetinha fina de
uma vassoura de piaçava. Era através do buraco que a varetinha deixava que o
fio de pesca iria passar. Fuçador, quebrei a caneta tinteiro do meu irmão
Ismael. Tentei colar as partes com o poder do fogo. Colou, mas ficou torta.
Depois
de velho, ao me lembrar das minhas experiências científicas com a cozinha,
pensei que seria possível montar um programa de química a partir da culinária.
Pois a química não se iniciou com a alquimia, que pretendia descobrir os
segredo das transformações da matéria? E haverá lugar onde tais transformações
são mais visíveis que a cozinha? Descobri, então, que um francês já havia feito
isso. Seu nome é Hervé This-Benckhard. Eis o que ele escreveu no seu
livro Les secrets de la casserole: “Cozinhar e fazer experiências
químicas partem do mesmo princípio; misturar produtos diferentes e ver qual o
resultado. As substâncias mudam de cor, de aroma, de sabor, de
consistência. São duas atividades concretas, enriquecedoras e, ao contrário do
que se imagina, nada difíceis” ( “O Estado de São Paulo,1994, 14 de maio, A-18).Mas
parece que os professores de química não se entusiasmaram. Acho que eles nunca
tiveram as experiências de alquimista que eu tive...
(Correio Popular, Caderno C, 31/07/2005.)
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