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Menino
inteligente e de olhos curiosos, decifrei desde muito cedo os mistérios do
sexo, a diferença entre os homens e as mulheres. E isso por conta própria, sem
que ninguém me contasse. Percebi que homens eram aqueles que usavam calças.
Mulheres eram aquelas que usavam saias. Essa conclusão óbvia me bastava. O
problema que me atormentava era outro: como saber o sexo dos bichos que nem
usam calças e nem usam saias? A única exceção eram os galos e as galinhas, nos
quais a diferença sexual está na cara dos galos: os galos têm uma crista
vermelha na cabeça e cantam. Se não tem crista vermelha e nem canta, é galinha.
E por
falar em crista de galo, lembro-me de que Leonardo da Vinci, no seu livro de
culinária, ensina uma receita de cristas de galo assadas, prato muito apreciado
na época. Há, entretanto, uma pendência que me deixa angustiado: as cristas
eram cortadas dos galos enquanto vivos? Ficavam eles, depois da cruel castração
de sua masculinidade, a perambular, humilhados, por entre as galinhas que
certamente se riam deles?
Mas
os outros bichos que nem usavam calças e saias e nem tinham crista na cabeça,
gatos, cachorros, cavalos, bois e vacas, me causavam perplexidade. Estávamos
meu pai, minha mãe e eu conversando, numa tarde, quando achei apropriado
esclarecer essa questão. Eu deveria ter 4 anos de idade. “Pai, como é que a
gente sabe quando é boi e quando é vaca?” Minha mãe convulsionou e soltou
um grito fino. “Diano, não! Diano, não!” Foi o que ela disse. Me
lembro bem. Não me lembro de outro grito igual. Meu pai deu uma risadinha sem
graça e disse: “É fácil. Os bois têm argolinha no chifre”. Se você não
entendeu a explicação do meu pai, digo que eu entendi e passo a explicá-la. Os
bois, touros que se tornaram obedientes pela castração, eram usados para puxar
carros de bois. Quem dava as ordens era o carreiro que caminhava a pé ao lado
do carro com o seu ferrão dotado de um guiso cuja música os bois entendiam
muito bem, treinados que tinham sido com técnicas pavlovianas: o simples soar
do guiso dizia que lá vinha ferroada. E antes que ela viesse eles
obedeciam. Andando ao lado dos bois havia sempre o perigo de que um
deles, provocado por alguma varejeira no focinho, meneasse a cabeça para o
lado, atingindo o carreiro com um chifre. Para evitar que isso acontecesse
aparafusavam-se argolinhas na ponta dos chifres dos bois e amarravam-se a
argolinha do chifre direito do boi da esquerda à argolinha do chifre esquerdo
do boi da direita por meio de uma tira de couro. Assim, as cabeças dos bois
ficavam impedidas de golpes bruscos que pudessem ferir o carreiro.
Aceitei
a explicação do meu pai sem acreditar muito porque o grito de minha mãe me
informou que eu estava andando em terreno proibido. Agora, muitos anos
transcorrido após o acontecido, meditando psicanaliticamente sobre esse trauma
infantil, veio-me a idéia de que o grito de minha mãe era uma reação ante à
possibilidade eminente de que o meu pai a despisse na minha frente. Porque se
ele dissesse a verdade e me revelasse o segredo da diferença entre bois e vacas
eu poderia, por analogia, chegar a conclusões sobre a diferença entre homens e
mulheres, e isso era como expô-la nua, aos meus olhos.
O
próximo passo na minha educação sexual teve a ver com galos e galinhas.
Intrigava-me o costume estranho que tinham os galos de correr atrás das
galinhas que fugiam cacarejando esbaforidas até alcançá-las. A seguir subiam
nas suas costas num equilíbrio instável, agarrando-se às suas cristas para não
cair e baixavam o rabo, ritual que não durava mais que 5 segundos. Dirigi-me
novamente ao meu pai. Sabia que seria inútil fazer pergunta tão complicada à
minha mãe. Perguntei-lhe das razões por que os galos faziam aquilo. Ele me
respondeu que se tratava de uma ação punitiva do galo por alguma coisa errada
que a galinha tivesse feito. Fiquei indignado. Revelou-se, então, uma vocação
que haveria de me acompanhar pelo resto da minha vida: desde menino fui
feminista. Estou sempre pronto a defender os fracos, tal qual D. Quixote
de la Mancha.
Ele, lançando-se de lança em riste contra os moinhos de vento. Eu,
atacando os galos a pedradas e vassouradas para que eles soubessem que,
enquanto eu estivesse por perto, não permitira aquele seu ato machista e
covarde. O fato é que, a partir daquele dia, não dei descanso aos galos.
A
lição seguinte ocorreu alguns anos depois. Caminhava com a minha mãe por uma
das ruas centrais da cidade de Varginha de um jeito que eu detestava: ela me
segurava firme pelo pulso, sem me dar chance de me libertar. Como as mãos dizem
coisas diferentes! A mão grande que segura a mão pequena. Como se dissesse: “Estou
aqui. Pode confiar em mim.
Você pode abrir a sua mão quando quiser”. É uma mão
que segura com ternura. Já a mão grande que segura a criança pelo pulso está
dizendo: “Você não tem escolha. Pode abrir a sua mão à vontade. Você
continuará preso pela minha mão...”
De
repente eu vi uma coisa monstruosa que nunca tinha visto, uma aberração, doença
terrível, pobre daquela mulher, com uma barriga imensa da qual se envergonhava,
tanto assim que tentava escondê-la debaixo de uma blusa que mais se parecia com
uma saia de tão grande. “-Mãe, olha só o barrigão daquela mulher...” Não
cheguei a terminar a frase. Minha mãe apertou o meu pulso com raiva e sem dizer
uma única palavra deu-me um safanão. Não entendi nada. Mas aprendi que
não deveria jamais falar sobre mulheres barrigudas. Nunca mais falei.
Estou
escrevendo minhas memórias que publicarei como livro. Essa crônica é um dos
fragmentos.
Correio
Popular, 21 de Agosto de 2005.
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