José Saramago - Caim ( Indicação de Livro)
Parece que o ateu José Saramago só aceita uma prova da existência de Deus: que o Senhor apareça para tomar café com o papa. Em um debate público em Roma, na semana passada, o escritor e Nobel de Literatura acusou Bento XVI de "cinismo", por invocar um Deus com o qual "nunca se sentou a tomar um café" (todos sabem que uma divindade que preferisse chá teria um estatuto ontológico duvidoso). O expediente fácil de aproximar o prosaísmo – o café – dos mistérios teológicos repete-se quase a cada página de Caim (Companhia das Letras; 176 páginas; 36 reais), o novo livro do escritor português de 86 anos. À lógica mítica que governa a nar-rativa da Criação no Gênesis, o autor justapõe uma razão miúda e prática. Pergunta-se, por exemplo, por que Deus não cercou a árvore do fruto proibido com arame farpado para evitar que Adão e Eva se servissem dela. O expediente garante ao livro um certo humor grosseiro – mas Caim não é uma comédia: estamos diante de um pretensioso acerto de contas com Deus.
Os temas bíblicos já foram explorados por Saramago, com melhor proveito, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, livro que provocou algum escândalo. Em Caim, é nítido o esforço para alcançar a nota polêmica, erguendo o primeiro fratricida da Bíblia à categoria de herói. Na versão de Saramago, Caim, depois de matar seu irmão Abel, viaja sem destino através do mundo e do tempo. Abraão, Moisés, Jó – vários personagens bíblicos cruzam pela narrativa. No episódio em que Caim acompanha as campanhas militares de Josué pela Terra Santa, Saramago emprega uma linguagem que beira o antissemitismo ("como sempre tem sucedido, à mínima derrota os judeus perdem a vontade de lutar"). Diante dos desmandos de Deus (e dos judeus), Caim aparece como uma pobre vítima das circunstâncias. A culpa do fratricídio pertence a Deus, que o induziu ao erro. No final, Caim comete outros, piores crimes (que implicariam nada menos que o fim da humanidade), em um ato de rebeldia contra a tirania divina. No lugar dos ancestrais mitos judaicos, o escritor comunista instaura a antiquada mitologia esquerdista do terrorista heroico. Entre Deus e Stalin, sabemos com quem José Saramago gostaria de compartilhar seu café.
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