My Way - Mars - Gun's... Canções que tocam a minha ALMA (seleção csl)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

E a humildade, é para os medíocres?

"Todos pensam em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo."
Liev Tolstói



Iniciaçao a Sao Tomas de Aquino

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                                A proposta de apresentar este texto, nada tem a ver com uma conotacao RELIGIOSA, perpassa, transcende qualquer coisa relaciona a Fé. A conotacao é pontualmente FILISÓFICA. Estabelecido isto passo expor: (csl)

Texto de outrem:


A TIRANIA DA IMAGEM

Da metafísica do fluxo
à treva luminosa:
Eckhart e a tirania da imagem




"Quintus: homo debet esse multum diligens ut spoliet vel denudet se ipsum a propria imagine et cuiuscunque creaturae et ignoret patrem nisi solum deum; tunc nihil est quod possit ipsum contristare vel conturbare, nec deus nec creatura nec aliquod creatum nec increatum. Totum suum esse, vivere, nosse, scire et amare est ex deo et in deo, et deus" (Processus Coloniensis) (1)

"..uma imagem propriamente dita é uma emanação formal simples que transmite toda a essência nua e pura,…uma emanação a partir das profundidades do silêncio, excluindo tudo o que chega de fora. É uma forma de vida, como se estivéssemos a imaginar algo que inflasse por si próprio e em si próprio e depois fervesse sem ferver por fora nesta ocasião compreendida ". (Eckhart)

“Dieu, en effet: ce qui excède le signe. Ce qui, signifié, serait aussitôt d l’éteint, serait déjà de l’aussi inconcevablement absent du tison éteint que le silence l’est du bruit, la ligne du point, la presence de la figure. Dieu ce qui, désigné, serait-ce du nom de Dieu, mot qui accueille pourtant l’idée de la défaillance du sens, ne nous a laissé qu’une image, ce qui nous induit au mensonge. Mais qui, lorsque le signe s’efface, commence à rayonner de cette lumière de tout en tout dont nous a privé la langage.” (Yves Bonnefoy)

"Que crítico não acredita que o seu dever fundamental, o seu mais ardente compromisso é destruir os totens, denunciar ideologias, censurar os idólatras” (Bruno Latour)

Eckhart nasceu por volta de 1260 em Hochheim, na Turingia e morreu em Avinhão em 1328. Entrou com 18 anos nos dominicanos de Erfurt e terminou os seus estudos teológicos em Colónia. Conhece-se a sua conferência inaugural, a Collatio in libros Sententiarum (2) e um Sermão pascal datado de 18 de abril de 1294. Sabe-se que por volta de 1293 é nomeado leitor no convento de S. Jacques em Paris. Pouco depois, encontramo-lo como prior de Erfurt e vigário provincial da Província da Turingia. É nessa altura que compõe os seus “Exercícios espirituais”, obra de juventude, para o tempo, ousada. Em 1302 Eckhart termina os estudos em teologia na universidade de Paris, passando a ser Mestre Eckhart. Durante os anos universitários de 1302-1303, o novo Mestre é titular da cadeira de teologia reservada aos dominicanos. Em Paris ganha nome na defesa do tomismo contra os ataques dos escotistas franciscanos. Regressa à Alemanha em 1302. Em 1304 é nomeado provincial da nova província de Saxónia, então com 47 conventos de irmãos, e representando 11 nações diferentes. Assiste em 1307 ao capítulo geral de Estrasburgo onde lhe confiam o cargo de vigário geral da província da Boémia. Voltará a Paris onde ensina de 1311 a 1313. Em 1312 instala-se em Estrasburgo como prior e pregador em vários conventos de monjas dominicanas e das beguinas (função que na altura incumbia aos Mendicantes). Nessa altura o vale do Reno é sacudido por um fervilhar de dissidentes e heréticos. O bispo João I de Zuric inicia uma campanha contra os "Irmãos e Irmãs da seita do Livre-Espírito e da Pobreza voluntária". Esta seita existe bem antes de Eckhart, mas desenvolveu-se a coberto da sua autoridade. "Pregando a possibilidade de uma vida feliz, colocando a possibilidade de uma beatitude do homem viador em que a pobreza e a nobreza delimitavam um novo "estatuto" de existência, um status adoptionis cristão que ia vai muito para além da oposição entre a "felicidade intelectual" dos filósofos e a "visão reflexiva" dos teólogos frustres, Eckhart opunha-se a uns e a outros" (3). Esta doutrina convinha, obviamente a begardos e beguinas, que não eram propriamente nem filósofos, nem clérigos nem teólogos. Ao situar aqui, e sem o medium duma "visão", uma união a Deus que os teólogos reservavam à pátria celeste, Eckhart parecia justificar as pretensões do livre-espírito: entrar livremente na deidade, penetrar o nada por decisão, sem o socorro da graça, unir-se a Deus, tornar-se Deus "à vontade". Uma das notas mais visíveis dos seus sermões é estarem impregnados das discussões teológicas do magistério parisiense de 1302-1303 e transporem para um auditório não universitário as teses sustentadas contra os teólogos franciscanos de Paris. Pode falar-se de uma certa "desprofissionalização" da teologia e da filosofia de onde sairá a "mística renana", ou a "mística especulativa".

O emprego do vernacular (médio alto-alemão) é dos aspectos revolucionários para a época. Dos 64 sermões reunidos no sermonário anónimo Paradisus animae intelligentis, 32 são de Mestre Eckhart, e aí encontramos o célebre sermão 9, Quasi stella matutina (Paradisus nº 33), um manifesto anti-franciscano em que se denunciam os "mestres de espírito frustre" afirmando que Deus é ser ou que a raiz da beatitude se encontra na vontade. Em 1324 Eckhart volta a Colónia e é nesta altura que choca com o arcebispo de Colónia. Desde o fim de 1325 que aparecem suspeitas a respeito do seu ensino e da sua ortodoxia. Tem já de se justificar por escrito.

O arcebispo entrega o caso a dois inquisidores que no decurso de 1326 apresentam uma lista de 49 proposições extraídas das suas obras e julgadas heterodoxas. Eckhart responde a 16 de setembro e recusa um certo número de entre elas como inautênticas. Uma nova lista de 59 proposições aparece agora. Volta a responder. Eckhart queixa-se diante da comissão de inquérito que o seu processo se arrasta e que os seus juizes tenham dado ouvidos a suspeitos. Recusa a validade da comissão episcopal apelando à Sede apostólica. Para pôr fim ao escândalo faz diante de todo o povo a sua declaração de ortodoxia na igreja dos dominicanos de Colónia a 13 de fevereiro. O seu confrade Conrad de Halberstad lê-a em latim, ele próprio tradu-la em alemão. A 24 de janeiro de 1327, o Mestre apela à Santa Sé em Avinhão. Convocado pelo papa João XXII, vai a Avinhão e aí morre antes de puder defender-se. Um pouco mais tarde uma bula do papa João XXII de 27 de março de 1329 censura 28 proposições para lá daquelas que o arcebispo de Colónia tinha comunicado à Santa Sé e de que nem todas tinham Eckhart por autor. A bula In agro dominico de 1329 condena 17 proposições como "contendo erros ou manchadas de heresia", 11 outros artigos são tidos apenas por "Malsoantes, temerários, e suspeitos de heresia", mas "susceptíveis de tomar um sentido católico mediante explicações e complementos".

Eckhart é, lamentavelmente, o único grande mestre da Idade Média cuja "obra de arte" académica desapareceu. As tarefas dum intelectual dominicano do século XIV eram triplas: explicar a Escritura (lectio), sustentar discussões técnicas (disputatio), pregar a Palavra (praedicatio). A Obra tripartida de Eckhart reflecte a sua tripla actividade. As obras deixadas por Eckhart repartem-se em dois grupos: as obras latinas e as obras alemãs. As obras latinas são de tom mais especulativo e técnico, redigidas directamente por ele. Dispomos de um Tratado da Oração dominical e dois Comentários sobre as Sentenças, Questões parisienses, comentários da Escritura, 58 sermões e alguns outros fragmentos. A obra alemã comporta apenas três pequenos tratados: Encontros sobre o discernimento espiritual; o Liber benedictus onde se agrupam um tratado De la consolation divine e um sermão Da nobreza do homem; enfim um breve tratado Do despojamento (4).

Eckhart resume perfeitamente a fortuna do trabalho dos “intelectuais na Idade Média”. E porquê? Dêmos a palavra a Alain de Libera: “Porque ilustra a invenção medieval do racional, a novidade e a fecundidade das relações que podem entretecer a teologia e a filosofia, com a condição de serem repensadas. Porque confirma, no quadro da relação de determinados homens e mulheres, a existência dum projecto de vida total, de um desejo de ‘bem viver’, em que, fora da universidade, o ideal universitário tem uma parte iminente”5. Como Siger de Brabant, Eckhart é um sábio, um universitário - se dele se diz que é “mestre” é porque deve este título à Universidade de Paris.

A originalidade de Mestre Eckhart reside principalmente na reformulação e no enriquecimento metafórico dos ensino dos Padres da Igreja, bem como dos “mestres pagãos” da Antiguidade. “Se não houvesse nada de novo, nada haveria de antigo”. Em Eckhart a “originalidade” consiste em tornar a origem (origo) viva. “Tornar novo” não significa “tornar diferente” mas simplesmente “tornar vivo”, conforme às exigências do mestre de vida (Lebenmeister). O teólogo é ao mesmo tempo Lesemeister (mestre de leitura) e Lebemeister (mestre de vida). À teologia de S. Boaventura foi buscar a noção de “niilidade” bem como a teoria da humildade como dominação do criado; ao intelectualismo aristocrático dos filósofos a noção da magnanimidade como virtude do homem segundo o intelecto. O Turíngio foi sobretudo um “passador” de ideias em que se cruzam os nomes de todas as virtudes num nome que as resume a todas, “desapego” ou “despossessão” (abgescheidenheit). O pensamento de Eckhart oscila entre Agostinho e Denis. O nosso Mestre apoia-se em S. Agostinho para indicar que há dois tipos de conhecimento, um superior ao outro: “quando se conhece a criatura em si mesma, é um conhecimento vesperal, e então vemos a criatura através das imagens com múltiplas distinções; mas quando conhecemos as criaturas em Deus, este conhecimento chama-se e é um conhecimento ‘matutinal’ e então contemplamos a criatura sem qualquer distinção, desapropriada (desimaginada) de qualquer imagem e aliviada de qualquer semelhança no Um que é o próprio Deus” (6). Esta distinção vem associada às duas ocorrências do verbo entbilden sobre os dez que comporta o "Benedictus deus". É agostiniano também o tema da re-formação do homem na "conformidade com Cristo" atingida pelo regresso da alma a si própria, o regressus animae, a dobra sobre a interioridade verdadeira, o "homem interior", a Verdade, o Verbo. É agostiniana também a ideia que concerne os sete graus do homem nobre. Por outro lado, a “Entbildung” corresponde à noção dionisiana de aphairesis, a prática da "negação abstractiva", da ultrapassagem das imagens e dos pensamentos, fazendo sair o homem de si próprio (é o tema do "êxtase") para deixar Deus entrar nele.

Encontramos este tópico em várias passagens do Livro da consolação divina e do Sermão sobre o homem nobre que a comissão de Colónia pôs em causa. E em causa estará sempre um certo emanatismo bebido em Avicena, mesmo se O Mestre transpõe o filosofema que se aplica ao domínio da natureza para o da graça (7). O que hoje se retém de Mestre Eckhart é fundamentalmente isto que Alain de Libera resume: "Conceber que, debaixo de doutrinas tão diferentes se esconde uma mesma verdade - a unidade da alma e de Deus no "único Um" que precede qualquer diferenciação entre Deus e a alma, e na própria alma, entre o fundo da alma e as suas potências -, tal é a intuição que governa o trabalho filosófico e teológico de Eckhart: uma intuição que ele repete sem se cansar a seus auditores alemães, "os grandes mestres de Paris não a compreenderam" (8).


A metafísica eckhartiana da imagem está no centro do seu pensamento. O Mestre parte da tradição filosófica e teológica em que a questão da imagem é apresentada9. É evidente que Mestre Eckhart não é o único, no começo do século catorze, a desenvolver o tema da imagem. Muito antes dele, os Padres da Igreja glosaram esse tema que chega a Mestre Eckhart e que será desenvolvido também pelos seus contemporâneos e seguidores, tais como Johannes Tauler, Henrich Suso, Jan van Ruisbroec e Hendrik Herp. O homem é à imagem de Deus porque escapa a qualquer definição, como o próprio Deus. Dizer que o homem é à imagem de Deus (Gn 1, 26) significa em definitivo que é uma existência pessoal, uma liberdade. Irineu de Lião dizia que “o homem é livre desde o começo. Porque Deus é liberdade e foi à semelhança de Deus que o homem foi feito”(10). E Gregório de Nissa dizia:

“A imagem só é verdadeiramente a imagem na medida em que possui todos os atributos do seu modelo (...) A característica da divindade é ser inapreensível: também isso o deve exprimir a imagem. Se a essência da imagem pudesse ser compreendida enquanto o seu modelo escapa a qualquer apreensão, essa diferença anularia o próprio facto da imagem. Mas nós não chegamos a definir a natureza da nossa dimensão espiritual, justamente á imagem do nosso criador: (...) é pois porque transportamos a impressão da incapturável divindade através do mistério que está em nós” (11).


Eckhart concebe o esquema do exitus-reditus tal como a lei fundamental da realidade ensinado pela Bíblia, tanto in toto, como se mostra na apresentação da criação e da consumação, como em versículos individuais (e.g. Ecle. 1,7: ...ad locum unde exeunt flumina, revertuntur, ut iterum fluant - "Todos os rios se dirigem para o mar, e o mar não se transborda“ (12). Uma imagem não é por si mesma nem para ela mesma; provém daquilo de que ela é imagem e lhe pertence com tudo o que ela é. Não é a propriedade e não provém do que é estranho àquilo de que é imagem. Uma imagem toma o seu ser directa e unicamente daquilo de que ela é a imagem, tem um mesmo ser com ele e é o mesmo ser” Este resumo da teoria da imagem que se refere unicamente ao modelo (Urbild) e de que a imagem é a cópia (Abbild) pode traduzir-se directamente em termos ontológicos. O acento é colocado no pólo “transcendental-unívoco” da relação analógica entre o modelo e a imagem, isto é entre o ser divino e o ser criado. Abstrair das imagens sensíveis para chegar ao Verbo-Imagem não é só questão das genealogia conceptual da Entbildung, mas da própria Entbildung enquanto centro de interesse duma doutrina filosófica, sobretudo, enquanto experiência subjectiva.


A Teologia mística de Denis o Pseudo Areopagita descreve o encadeamento dos métodos a seguir para chegar a Deus. O caminho passa essencialmente pela travessia da linguagem e do pensamento, através da ultrapassagem da afirmação e da negação, e mais profundamente pelo despojamento de todas as imagens até ao extenuamento do pensável e do dizível - agnosia - em que se dá uma "união com aquele que está para lá da essência e do conhecimento. Experiência de deserto. O deserto que é Deus só se ganha percorrendo a senda estreita em que o homem já não está sujeito nem à audição nem à visão, nem ao espaço nem ao tempo - são realidades que é preciso banir (para) além de todo o sentido, abandonar enquanto princípios de um conhecimento representativo para os encontrar na limpidez do termo, onde não são nem isto nem aquilo, mas se encontram no sem fundo da sua origem:

Ó minha alma
Sai, que entre!
Sucumba todo o meu ser
No nada de Deus,
Sucumba nesse fluxo sem fundo!

O deserto é um símbolo equívoco, pode significar o lugar da serenidade, do silêncio interior, da solidão, mas também da prova e mesmo da tentação (Mt 4, 1-11 e Lc 4, 1-13). Eckhart joga nos dois registos. A primeira significação está mais próxima do contexto da “entbildung”, enquanto a segunda tem o sentido da prova, mais harmonizada com a ideia da solidão do que da tentação. Eckhart evoca assim a tentação de S. Antão no deserto: “Quando ele triunfou desta tribulação, Nosso Senhor apareceu-lhe em pessoa, repleto de alegria. O santo homem disse então: ‘Ah! meu caro Senhor, onde estavas quando eu me encontrava em tão grande aflição?’ Nosso Senhor respondeu-lhe: ‘Eu estava aqui como estou agora’”14. “A interioridade está sempre presente, mas é necessário franquear o vau do Iaboc, desligar-se do efémero, transmutar as imagens na imagem, desmarcarar as imagens e encontrar o “homem” que sofre na solidão e que luta toda a noite com o seu escudeiro, Gen 32,30: Vidi Deum facie ad faciem, et salva facta est anima mea (15).

É claro que a significação do deserto está ligada à do silêncio e do despojamento e logo à do vazio. “O Pai diz: ‘conduzi-lo-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração’. Coração a coração, um no Um, eis o que este Deus ama. Deus detesta tudo o que é estranho, longe desta unidade. Deus arrasta e atrai para a unidade. Todas as criaturas procuram a unidade, mesmo as mais baixas, e as mais altas encontram-na; arrastadas e transformadas acima da sua natureza, elas procuram o um no Um, o Um em si próprio” (16). Lê-se nas Instruções espirituais, obra do Eckhart jovem: “O homem não deve contentar-se com um Deus que pensa, porque quando o pensamento se esvai, Deus esvai-se também” (17). Procurar Deus no deserto não significa fugir do mundo; há que aprender a solidão interior (aprender o deserto interior) onde e próximo de quem quer que seja. O deserto interior só na aparência se opõe a uma vida entre os homens. Rito de passagem, benção do homem pela vida nas aparências e nas coisas transitórias.

“Onde não há imagens nem formas”. É evidente: Imago, como species, similitudo, effigies, opõe-se a signum; este pode ser abstracto; mesmo se podem combinar-se (v.g. numa inicial ornada), o signum é anicónico (como a cruz), enquanto a imago é antropomórfica (uma Virgem com o Filho) (18). A palavra “imagens” remete para a visão especular, para a captação de Deus e do criado no espelho da verdade. A “residência” ou fixação na deidade abole a visão especular, suprimindo o espelho, o modelo e a imagem. Esta abolição é aquilo a que o Mestre chama “Entbildung”. Este estado de não conhecimento ou melhor, de “conhecimento sem imagens” é descrito no Sermão (40):

"Quando o homem se une totalmente a Deus com amor, desliga-se das imagens, formado e transformado na conformidade divina na qual é um com Deus”

Para Wolfgang Wackernagel a obra de Mestre Eckhart contribuiu grandemente para o desenvolvimento das possibilidades filosóficas da língua alemã, nomeadamente no que tange ao vocabulário da imagem (19). Autor situado no cruzamento das línguas latina e germânica, Eckhart é reconhecidamente um inovador da terminologia da imagem, inspirada dos contextos filosóficos e teológicos subjacentes à definição latina de imago, alimentando-se também do contexto sobrenatural, mágico e religioso do vocábulo oeste-germânico

Ninguém melhor do que este autor para tratar do semantismo do verbo “Entbilden” ou do substantivo bilde que confina com os seus equivalentes latinos ratio, forma, phantasma e species. Wackernagel encara o vocabulário eckhartiano da imagem a partir da sua dupla origem: como síntese entre a definição latina da imago e a genealogia pré-eckhartiana do termo oeste alemão bilidi (p. 15). A “entbildung” permite aceder à “unitio” (20) divina, ao fundo abissal (abgrund) do divino, como se esta “uniformidade” estivesse aquém e acima da trindade das Pessoas. A “entbildung” pode ser entendida como a “superação” - a aufhbeung - da “creaturalidade”. Pode também definir-se como um processo de transmutação quase “alquímica”: “Se estivesse seguro que todas as minhas pedras fossem mudadas em ouro, quanto mais pedras tivesse e maiores, mais contente estaria e mesmo pediria pedras, e se pudesse, adquiriria maiores e em maior quantidade; quanto mais tivesse, maiores seriam e mais me seriam caras.” Despojar-se de si mesmo é o mesmo que morrer para si mesmo (21). É assim que o Mestre diz que “os bem-aventurados no reino dos céus conhecem as criaturas despojadas de todas as imagens das criaturas e conhecem a única imagem que é Deus” (22). S. Tomás já dissera o mesmo, afinal (23

Liguemos a questão da imagem à questão da humildade. Eckhart, no Benedictus Deus, recorre a S. Agostinho, em particular ao De vera religione 26, 49, descrevendo os seis (sete) graus do homem interior para chegar à Entbildung no sexto (e sétimo). A versão apresentada é a da mutação agostiniana, mas não nomeia o sétimo estado: porque a quies aeterna de que se trata em Agostinho é chamada nullis aetatibus distinguenda beatitudo perpetua. Como definir a verdadeira e perfeita humildade? Desde Agostinho que o tema não é novo. Mas os anos 1300 carregaram-no de perigos novos, tanto em filosofia como em teologia, conflitos que tornam problemática a tentativa para harmonizar o profano e o sagrado. O primeiro terreno de luta é a querela sobre a pobreza de Cristo. Em 1322, durante o capítulo geral de Perúsia, os Franciscanos proclamaram a pobreza do Cristo e dos Apóstolos sã doutrina católica. A 12 de novembro de 1323 o papa João XXII declara esta tese herética. O sermão 52 de Eckhart é uma longa apologia da pobreza de espírito, lançada por um homem já sob o peso da inquisição. O Mestre não dissocia a pobreza da humildade: o homem pobre e o homem humilde são um só e mesmo homem. Leia-se a vibrante homenagem ao seu “querido senhor são Francisco. Isto quando o geral dos fransciscanos, o espiritual Miguel de Cesena, que comparece em Avinhão em 1327, acusa formalmente Eckhart, na sua Apellatio maior de 18 de setembro de 1328, de ter espalhado “vergonhosas e monstruosas heresias” na Teutónia.

A pobreza aqui louvada atinge em cheio a teologia do papa, incomodando também as certezas dos espirituais. Um segundo terreno de luta teológica vai ser a visio beatifica. A teologia eckhartiana da pobreza atinge também de caras a teologia da visão beatífica dos mestres de Paris. A pobreza de espírito exclui a tese do conhecimento reflexivo ilustrado nos anos 1300 por Jean de Paris e D. de Saint-Pouçain. O homem pobre é também o homem humilde, e o homem nobre do Livro da consolação divina, aquele que conhece Deus na douta ignorância, não sabendo nada de nada, não aquele que conhece que conhece Deus. Esta é a tese lançada no sermão 52 (o homem pobre é aquele que não sabe nada, que nada quer e que nada tem) e que data pelo menos de 1318.

Um homem único, humilde, pobre e nobre não poderá agradar a toda a gente: nem aos teólogos de Paris, nem aos espirituais franciscanos, nem ao papa. A humildade cristã é a virtude cristã por excelência porque ensinada por Cristo e porque desde a IIa-IIae de Tomás de Aquino aparece como doutrina perfeitamente estabelecida. É ao falar da humildade que Eckhart se expõe à censura. A suspeita parece legítima. Eckhart escreve que o homem humilde e Deus são a mesma coisa - um só ser e uma só vida - o homem humilde nada tem a pedir a Deus. A resposta é rápida: Eckhart é um místico e especulativo. É preciso reler o nosso Mestre, que não é um místico do excesso, sim um mestre em teologia que ensina em Paris e que dez anos depois, nos conventos de mulheres, rediz em alemão aquilo que dissera em latim.

A doutrina eckhartiana da humildade inscreve-se na confrontação entre filosofia e teologia, que nasce na segunda metade do século XIII e que conhece o apogeu nos anos 1300. Os filósofos são aristotélicos radicais, Mestres de artes, leitores e comentadores da Etica a Nicómaco, partidários de um aristocratismo intelectualista cuja doutrina da “felicidade mental” coroa um “amor intelectual de Deus” entendido como “contacto” ou “conexão” da inteligência humana com o Pensamento divino, constitui a expressão última desse grupo. Os teólogos são os conservadores e os mendicantes da Faculdade de teologia da Universidade de Paris que, na esteira de Etienne Tempier e da condenação do aristotelismo em 1277, e em nome de uma concepção da beatitude celeste, fechada a qualquer possibilidade de uma felicidade humana perfeita nesta vida, continuam hostis ao humanismo filosófico dos homens das artes. A questão da humildade é o lugar exclusivo da luta entre as duas facções. A alternativa é simples: trata-se de virtudes, de formas de vida e de classes de homens. Aqui a grandeza de alma, a magnanimidade do aristocrata, do pensador, ali a humildade do cristão e a virtude do mendicante. Uma fórmula de Siger de Brabant resume o ponto de vista aristotélico: a humildade é a virtude dos medíocres, a magnanimidade a virtude dos grandes.

O filósofo Siger de Brabant é um asceta. O mestre de Brabant visa o filósofo casto e votado ao pensamento puro, i.é., em ascensão espiritual que atinja aunião com os seres metafísicos que povoam o cosmos inteligível do peripatetismo greco-árabe - o “Doador de formas”, dos “inteligíveis separados”, os “Motores das esferas”, que deixam “fluir”, na alma humana o tesouro ou a fonte do pensar. O filósofo é um intelectual mas no sentido em que é o homem do intelecto e em que a intelectualidade é o destino do homem fundado na sua essência.

A teoria metafísica do fluxo, da "influência" encontra-a Eckhart no Liber de causis e na Metafísica de Avicena, conforme à interpretação que dela tem Alberto Magno. O superior flui, escorre e emana no inferior pela sua própria natureza. A etimologia ajuda a formular a noção cristã da humildade: da terra (humus) ao homem (homo) e ao humilde (humilis). Acrescente-se aqui o pensamento do Pseudo-Areopagita: "a natureza do Bem supremo é difundir-se a si próprio, e fazendo-o, difundir o ser" (Bonum est diffusivum sui et esse). Na metafísica avicena da emanação - o fluxo (da graça, agora, e a missão do E.S., ou a “inabitação” do Verbo, i.é., a Deidade cantada por Mechtilde de Magdebourg. Também no Tratado do desprendimento está patente a presença de Avicena. “A necessidade, a estabilidade e a utilidade da humildade na ascensão espiritual, eis o que nos ensinam a natureza, as matemáticas e a Escritura.”

Tudo converge nesta teoria do fluxo: a natureza, com a metafísica (aviceniana) do fluxo e a física (aristotélica) do “lugar natural”; as matemáticas com a teoria da projecção da esfera num plano, a Escritura, com o jogo de exegese complexa que resume o conjunto do discurso cristão nas teses fundamentais do Prólogo do Evangelho de S. João, a divinização do cristão e a graça da inabitação (ele veio e habitou entre nós), a piscadela da “águia” espiritual no seio do Pai, onde está o Verbo, o logos, a pureza primeira e a raíz de todas as coisas. De Ezequiel a João, passando por Aristóteles, Avicena e Escoto Eriúgena, tal é o trajecto do Mestre: a consumação do programa filosófico e teológico, em que - como o revela a afirmação dez vezes retomada do paralelismo da ética, da física e da teologia (in moralibus, in naturalibus, in divinis) - a natureza, no mais íntimo de si mesma, no seu centro, no seu fundo, simboliza inefavelmente a graça.

Há virtudes que desde aqui tornam possível uma relação viva do homem com Deus, uma relação tal como a contemplação filosófica, a sabedoria teorética dos aristotélicos radicais, integrada na perspectiva da divinização do cristão, ilustrada pelos Padres gregos. Estas virtudes são: a pobreza, a humildade e a nobreza, ou numa palavra que as resume todas, o desprendimento. A pobreza e a humildade eckhartianas nada têm a ver com as virtudes cristãs de que falam os teólogos conservadores do fim do século XIII, nem a nobreza exaltada por ele se identifica com a magnimidade de Siger como a virtude dos grandes. A grandeza de alma de que ele fala é a do vazio, é esse “aumento do alma” através da aniquilação que eleva o homem acima de todo o criado. Grandeza e pequenez não se opõem. A humildade é grandeza (projecção geométrica da esfera) e o baixo e o alto coincidem. O polo e o centro: o abaixamento verdadeiro é uma interiorização. o homem pobre, humilde e nobre são um só e mesmo homem: o homem desapropriado, “sem qualidades”, o homem “sem isto nem aquilo”, o homem desapegado.

Estamos diante da dialéctica da elevação e do abaixamento: coincidentia oppositorum. É a consequência duma lei de comunicação divina que estrutura a prática do desapego. Se o próprio de Deus é dar, é preciso procurar e encontrar um sujeito “receptivo”. A humildade é aquilo que dá a Deus a sua deidade: sem a minha humildade Deus não pode dar-me nada, porque não posso receber o seu dom sem humildade.

A perfeita humildade faz o céu a partir da terra porque em tudo o que é humilde, a terra e o céu, o alto e o baixo se identificam. Só o que está em baixo pode subir; mas como esta ascensão daquilo que está em baixo é, ao mesmo tempo, abaixamento daquilo que está em cima, a humildade designa um movimento simultâneo ou único, do alto para baixo e de baixo para cima. Esta é a lei da teoria do fluxo elaborada no Livro das causas e por Aviceno. Desnudando-se de todo o criado, i.é., da influência de todas as causas segundas, a inteligência anula o poder causal das causas segundas na sua decisão de se submeter apenas ao influxo da Causa primeira. Subtraindo-se ao mundo do sangue e da carne, a alma toma Deus por Causa única e “obriga-o” a difundir-se, só, nela.

A lei da humildade é a lei do Dom inexorável. É a lei da realização de todas as coisas. Quem quer estar em cima e elevado, deve estar em baixo e abaixar-se, porque a humildade é a raiz da difusão de Deus. A humildade do homem humilde é o abaixamento de Deus e a profundidade da humildade coincidem no Fundo sem fundo, na unidade de Deus com o homem submetido a Deus em Deus mesmo. Os censores de Colónia eram menos simples do que as monjas que ouviam o Mestre: "O homem não tem necessidade de pedir a Deus, pelo contrário: pode exigir-lho, porque a altura da deidade só pode olhar o fundo da humildade, o homem humilde e Deus são um e não dois" (Sermão 15). "Deus é como o sol. Aquilo que é o mais alto na sua profundidade sem fundo responde àquilo que é o mais baixo no fundo da humildade. O homem verdadeiramente humilde não tem necessidade de pedir a Deus; pode obrigar Deus, porque a altura da deidade só tem olhos para a profundidade da humildade" (Sermão 14). A humildade de Jesus é o modelo da justificação cristã. A humidade é a expressão passiva do abaixamento activo e interior de Deus no coração do homem assumido. A doutrina da graça - Incarnação e Inabitação - é o conteúdo teológico da doutrina filosófico-teológica da humildade. A metafísica do Verbo é a formulação cristã da metafísica do fluxo. Uma causa que não flui no seu efeito deixa de ser a sua causa. A ausência de causa é o pecado, a perda de si no nada, no mal que, como Denis diz, nem tem causa nem ser nem princípio nem fim, causa deficiente do Nada

A humildade é o abaixamento de Deus ao coração despojado de tudo. Ele veio e vem no meio de nós, no centro, no fundo, nele, na sua casa. O orgulho é a magnimidade sem humildade, a natureza sem a graça, a filosofia sem o Cristo. A humildade é uma raiz plantada no fundo da deidade, é a virtude da Treva que “espalha a luz”. Esta libertação do poder da Treva é a oração segundo o espírito e a inteligência. Alma cheia de graça, nua e pura de todo o criado. Virgem. O carácter sem mistura da inteligência de Aristóteles depois de Anaxágoras, tem uma significação para o cristão. A intelectualidade é graça, enquanto vazia de todas as criaturas. É nessa virgindade que a alma se pode tornar mãe de Deus. É o fluxo da graça. A quem só olha Deus, Deus dá a sua própria deidade.

A perfeita humildade de Maria é o modelo do pensamento fértil. Este nascimento é a verdadeira contemplação filosófica, como o formula a Ética a Nicómaco X,7: “A Inteligência ou melhor: o intelecto. Esta contemplação é também a verdadeira felicidade, atingida nesta vida. É a beatitude do viajante imóvel.” O alto e o baixo identificam-se no centro, no Nascimento do Filho na alma do cristão. Liguemos o tema da humildade ao da Geração do Filho, a injunção feita a Zaqueu e a declaração do Salmo (“Hoje eu te gerei”). A doutrina da humildade é a da divinização.

B. Latour propõe três espécies diferentes daquilo a que chama “iconoclash”: religião, ciência e arte contemporânea (27). As imagens religiosas são aquelas que ainda atraem as mais ferozes reacções (do Exodo, 34, 13, à destruição dos Budas Bamiyan pelos talibãs). Porque é que as religiões apelam à destruição dos ídolos para se adorar Deus em verdade e porque é que a anti-religião apelam à destruição dos ícones sagrados para dar á humanidade os seus verdadeiros sentidos? Onde está o “iconoclash” em ciência? “Quanto mais instrumentos e mediação, maior é o abismo da realidade” (ibidem: 10). Em nenhum outro lugar se aplica mais o segundo mandamento. Em ciência não existe algo como “mera representação”. Em relação à arte contemporânea, não há dúvida que a pintura, as instalações, os happenings, os museus são “human-made”. Nenhum acheiropoiete (não feito por mão humana).

São dois os regimes da imagem: representacional, metafísica, analógica, continuista, materialista. A imagem era metafísica e analógica, mas está a tornar-se sensível e digital. O corpo está a tornar-se a imagem do mundo. "A narcose mediática", a velocidade de libertação (Virilio) está a desertificar o mundo das imagens. Estas não se distinguem da realidade, adquirem qualidades de quase-sujeito, de quase-ser - o ciborg, o laser estão a substituir a imagem que ainda arrastava consigo o sortilégio da analogia, motorizando a vista ou completando o que resta do corpo, esse objecto obsoleto.

A câmara escura é a “primeira síntese susceptível de assegurar um domínio controlado da realidade” (Bellour) através de uma anexação da função perceptiva à identificação e reconhecimento da quantidade de impressão analógica que ela é capaz de fornecer, enquanto máquina de visão que tem por objecto e objectivo a sua construção. A imagem foi tomando o passo sobre o mundo. As imagens-técnicas - fotografia - as imagens deixam de ser vistas como imagens e passam a ser vistas como visões do mundo, janelas (Flusser). As novas sínteses automáticas do mundo impedem de ver o análogo como construção. “O mundo reflecte os raios do sol e outros raios que dispositivos ópticos, químicos e mecânicos permitem fixar em superfícies sensíveis e que produzem como resultado imagens técnicas; noutros termos, estas parecem situar-se no mesmo nível de realidade que a sua significação. O que nelas vemos, ao que parece, não são então símbolos a decifrar, mas sintomas do mundo através dos quais é possível entrever este último, mesmo que indirectamente”28. Passamos da ordem da analogia da imitação para a ordem da analogia da percepção (fotografia), de movimento (cinema), de tempo (imagem electrónica), mais problemático com o aparecimento das imagens de síntese. Assistimos à reprodução automática do mundo, dobrando-se em cópias, duplos, espectros, simulacros. O estatuto das coisas altera-se: fantasmagorias, simulacros da coisa: “As coisas emanciparam-se e adoptam um comportamento humano... A mercadoria transformou-se em ídolo que, apesar de ser o produto da mão do homem, comanda este último” (Marx). Em vez de “coisas” falemos de “imagens”.

Didi-Huberman dá-nos um mapa impressionante do que pode a imagem: “Images-contacts? Images qui touchent quelque chose puis quelqu’un. Images pour atteindre au vif des questions: toucher pour voir ou, au contraire, toucher pour ne plus voir; voir pour ne plus toucher ou, au contraire, voir pour toucher. Images trop proches. Images adherents. Images-obstacles, mais où l’obstacle fait apparaÎtre. Images accolées entre elles, voir à ce dont elles sont les images. Images contiguës, images adossées. Images pesantes. Ou alors très légères, mais qui affleurent, qui effleurent, nous frôlent et nous touchent encore. Images caressantes. Images tâtonnantes ou déjà palpables. Images sculptées par du révélateur, modelées par de l’ombre, moulées par de la lumière, taillées par du temps de pose. Images qui nous rattrappent, nous manipulent peut-être. Images capables de nous froisser, de nous heurter. Images pour Images pour que notre main s’émeuve”(29).”

Resistirá o paradigma eckhartiano da imagem ao assalto a que a modernidade submete a imagem? Bastará citar G. Bataille. Este filósofo faz a crítica da concepção metafísico-religiosa da realidade no interior da qual o mundo material é da ordem da dessemelhança em relação a uma forma ideal originária, para a qual as coisas remetem através de uma semelhança negativa ou imperfeita, pois, de acordo com a perspectiva teológica, a semelhança como igualdade de forma estaria interdita aos homens, impotentes para assimilarem a forma do seu Deus. Bataille decompõe esta construção metafísica “invertendo a hierarquia do modelo e da cópia e renunciando a toda a mitologia cristã, de influência aristotélica, da origem” (30). A semelhança deixa de ser entendida como substância fixa, sendo vista então como processo, relação visual que põe em contacto e em movimento as matérias e as formas, no sentido do informe, da dessemelhança, da desfiguração.

Também para o empirismo transcendental de Deleuze não há um mundo (actual) que depois é representado em imagens (virtual) pela mente privilegiada do homem (o sujeito). A vida é exactamente esta actual-virtual interacção do imaginar: cada fluxo de vida se torna outro em resposta àquilo que não é. A vida é então um fluxo e conecta-se com corpos em interacção ou “máquinas desejantes”. Estas conexões formam regularidades que podem então ser organizadas através de “máquinas sociais”. O papel da filosofia e da arte é mapear as vias em que os corpos imaginam e produzem ficções, ideias ou conjuntos que parecem ser transcendentes mas que são realmente produzidas pelo fluxo da vida. A imagem não é nem actual nem virtual mas o intervalo que põe em cena agora o virtual. A planta ‘imagina’ ou capta o sol em direcção do qual se volta, permitindo o começo da fotosíntese: “Há imagens, as coisas são elas mesmas imagens porque as imagens não estão no nosso cérebro. A cérebro é apenas uma imagem entre outras. As imagens estão constantemente em acção e a reagir umas às outras, produzindo e consumindo. Não há nenhuma diferença entre imagens coisas e moção” (Deleuze 1995: 42). "A semiótica das pequenas percepções é uma semiótica que se nega enquanto signo, que aponta para aquilo que é o contrário do signo: a força”. “A imagem-nua tem o seu esoterismo de código e o seu esoterismo de força, de não-código”... Deleuze não quis uma semiótica, quis um dispositivo de intensidades e de forças que fosse instrumento de análise de uma estética, de um conhecimento, de uma literatura, etc. “O que me interessa, no fundo, é partir de um campo que é um campo de forças, um campo transcendental onde se vai procurar uma heterogénese, para falar como Deleuze, de formas e signos. Simplesmente, este campo de formação de signos não é um campo virgem, originário. Qualquer coisa se inscreveu a partir da linguagem que não é uma linguagem” (31).

É esta recusa em atribuir experiência a um observador ou sujeito que torna a experiência transcendental. O erro ou a fundamental ilusão do pensamento é a transcendência. Damásio fala sempre de “imagem mental” (2000: 361) entendida como “padrão mental” (ibid., 361). Damásio conclui que o processo designado por mente - “quando as imagens mentais se tornam nossas devido à consciência” - pode ser visto como “um fluxo contínuo de imagens, muita das quais se revelam logicamente interligadas. “O pensamento é uma palavra aceitável para traduzir um tal fluxo de imagens” (ibid., 362/3). “Qualquer símbolo com que possamos pensar é uma imagem, sendo bem pequeno o resíduo mental que não é constituído por imagens mentais. Até os sentimentos”! (...) “são imagens”, estas de tipo somatosensorial (ibid., 363). Na obra deste neurocirurgião, as imagens mentais “surgem de padrões neurais ou de mapas neurais, formados em populações de células nervosas (ou neurónios) que constituem circuitos ou redes” (367).

Com a Revolução informática assistimos, na expressão de Mitchell Stephens a algo como "The rise of the image, the fall of the word". O mundo das palavras impressas está a morrer e o o mundo das imagens em movimento está a ganhar terreno. O poder da arte e da literatura tornou-se háptico. A experiência moderna centra no choque (Benjamin), enquanto norma da vida moderna: sensorium corporal. O seu efeito é o do choque. William Burroughs fala da “tremenda vitalidade eléctrica” das ilustrações de Keith Haring. “E tudo fazia referência a tudo; foi isto que aprendi a partir dos ‘cut-ups’ de Burroughs. Sam Wood choca através das suas “moving pictures

Voltemos a Eckhart. Aos olhos dos mestres frustres que não aceitaram a versão cristã da felicidade mental nem a elaboração filosófica do tema patrístico da divinização do cristão; os filósofos de profissão consideram-no um “louco” - a palavra é de Guilherme de Ockham; os “espirituais”, como Michel de Cesena, consideram-no um “herético”; a cúria pontifical de Avinhão, um “temerário” e um “malsoante”; passará por um aristotélico radical aos olhos dos teólogos conservadores que o acusam de ter professado a eternidade do mundo. Incompreensão que é o ponto de partida medieval de uma oposição entre filosofia e mística que ainda hoje pesa. A própria Ordem a que pertence parece desacreditá-lo parcialmente: um pouco antes da abertura do seu processo, ao capítulo geral de Veneza denunciou explicitamente os perigos da “pregação vulgar” na Alemanha, e o geral dos Padres pregadores, Barnabé Cagnoli denunciou tanto a pregação de “subtilidades diante da gente do povo” como a discussão de “problemas demasiado difíceis nas escolas” dominicanas e os conventos de formação (32). Bem tentou Henri Suso defendê-lo, ao redigir o seu Pequeno Livro da verdade: demonstrar, no calor do processo de inquisição intentado contra o seu antigo mestre, que o ensino eckhartiano autêntico nada tinha a ver com aquilo que os irmãos e as irmãs do livre-espírito espalhavam com o seu nome. A sua empresa era outra: “Hoc autem dicentes non tollimus rebus esse nec esse rerum destruimus, sed statuimus”(33). Como sempre, o poder passou ao lado, abandonando o homem ferido à sua sorte.

A cristandade medieval, no Oriente como no Ocidente, foi abertamente iconófila, privilegiando a imago em detrimento do signum. A referência à Incarnação é a sua última justificação e o seu principal motivo. Tomás de Aquino acrescenta à função da imagem (didáctica, mnemónica, afectiva), uma outra a que chama de transitus (noção neoplatónica tirada do Pseudo-Denis traduzida por João Escoto Eiúgena), de relacionamento com as protótipos (34). Será a Entbildung - enquanto “desimaginação” - também uma forma de iconoclasmo? O Mestre distingue as imagens da experiência sensível, relativas à teoria do conhecimento, e a imagem “mística”, a que olhamos “com os olhos fechados”, transportada para a mais profunda interioridade da alma. A imagem remete sempre para além dela mesma: a imagem-Urbild, o modelo exemplar de todas as imagens-Abbilder, imagens de imagens, em cascata. “As imagens cegonhas de uma realidade sempre em fuga e subtraída a si própria: aspiram à autenticidade daquilo de onde procedem, enquanto que em si mesma, são apenas símbolos utópicos, signos do não-lugar e do “sem porquê” (35). Para o Turíngio as imagens são bem menos que o nada “criatural”. Mas sendo mesmo intermediárias mudas do irrepresentável, mais próximas do verbo inefável do que da linguagem humana, elas são “mensageiras” das causas primeiras, porque em Deus, enquanto modelos de toda a criação. Como as criaturas, “nada” e “signo” do criador: quais anjos ao mesmo tempo volúveis e mudos, intermediários caídos do inefável. “Eckhart deprecia a s imagens para glorificar aquilo de que elas são a imagem”. Não é portanto iconoclasta. Remete para uma ética da imagem e para uma crítica da representação. Não pode, num tempo dividido entre a “fanopeia”36 e a “abstracção” da imagem, esta ética da imagem ser o melhor remédio para a cura dos olhos? O mundo das cópias fez delas Ab-bilder, isto é “imagens caídas”, gerando uma penúria relativamente aos modelos e aos originais. Questão do trigo e do joio. João XXII acusa Mestre Eckhart de ter semeado “o joio por baixo da semente da verdade”, “no campo do Senhor” (37). Onde começa acaba a censura e começa a liberdade? Em Eckhart a ética da imagem liga-se ao desapossamento do poder ilusório das imagens da região “da região de dessemelhança infinita”. Obriga a ir além da imagem. A Entbildung é uma ética do desapego, um exercício da Gelassenheit, está acima das aporias da moral da imagem: trata-se de compreender o que pode implicar o apego e identificação com as imagens, quaisquer que sejam a sua natureza e o seu valor, “para o melhor e para o pior”.

Estamos nos antípodas da abstracção que no domínio pictural e na arquitectura representaram um esforço denodado de “espiritualização” (Kandinsky e Rotko) e que não será ilegítimo aproximar da obra afairética do Mestre. A proposta de Wackernagel parece-nos sábia: “Entre o iconoclasmo e a fanopeia, é preciso encontrar uma terceira via: a abstracção eckhartiana, como afirmação do nada das coisas criadas, logo das imagens, não destrói o seu ser, pelo contrário, diz Eckhart, funda-as”. Afinal disse uma só coisa a vida toda e com um só vocábulo: "Quando prego tenho o costume de falar do desapego e de dizer que o homem deve desapegar-se de si mesmo e de todas as coisas. Em segundo lugar, que devemos ser reintroduzidos no Bem simples que é Deus. Em terceiro lugar, que o homem se lembre da grande nobreza que Deus colocou na alma afim que o homem chegue assim maravilhosamente a Deus. Em quarto lugar, falo da pureza da natureza divina - que claridade inexprimível cabe à natureza divina. Deus é uma Palavra, um Verbo in-expresso" (38). Desde o desapego de todas as coisas até uma "ad-imaginação" na claridade inexprimível do Verbo divino, entbilden constitui o eixo central da trajectória mística do Turíngio.

Não estamos condenados ao vazio necessário de Blanchot ou ao nada de Bataille. A imagem é aquilo que a religião oferece, reificando a través dos dogmas aquilo que não tem sentido senão negativamente, como desfalecimento do sentido: daí a sua mentira. Para Y. Bonnefoy "cést le plein qui est tout entier - qui est en paix - dans l'évidence, ici, maintenant, de chaque chose terrestre" (39). "On n'appelle pas Dieu par son nom, on l' appelle dans un nom, et cela peut être du même coup n'importe quel nom, c'est ce qu'on nomme l' amour" (40). Como casar o negativo com o positivo da palavra profética e da encarnação para afirmar o inconhecível de Deus? Não pode o inconhecível fazer de Deus não uma imagem particular, mas um nome próprio, o inesgotável dum encontro e de uma procura.


Fonte: http://www.triplov.com/ista/encontros/poder_imagem/jose_augusto_01.htm
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