Quem lê Machado não ganha só o convívio com o verdadeiro gênio da língua portuguesa, mas acaba por conhecer a metafísica de um dos mais profundos filósofos alemães: Schopenhauer. Como? De um modo que nada tem a ver com os manuais e, talvez, bem menos com os scholars machadianos.
Machado está longe de ser um “exemplo da influência de Schopenhauer” em escritores. Mais distante ainda de ser um escritor que “se utiliza da metafísica de Schopenhauer”. Nada desses sonhos de professores que deixam tudo arrumadinho no quadro negro ou em dissertações de mestrados ou papers de colóquios. O leitor de Machado encontra Schopenhauer por uma questão simples: Schopenhauer era machadiano e, quando encontramos algo de autenticamente machadiano nas obras de Machado, damos de cara, então, com Schopenhauer.
Caso se quisesse fazer o resumo máximo da filosofia de Schopenhauer, poder-se-ia dizer o seguinte: Hegel escolheu a razão como elemento para engravidar e conduzir o real e, assim, o real é dito racional, enquanto que Schopenhauer escolheu a vontade para impregnar o real e, assim, o real é irracional – o que é irracional é o caótico. Ora, o caótico, exatamente por ser caótico, faz o mal (e o bem) sem que possamos compreender sua razão, uma vez que não tem razão, só vontade. O mundo até pode parecer ter alguma coisa de organizado, mas sua realidade subjacente, o “verdadeiramente real”, é o caos – nesse mundo, ninguém está isento de receber uma “agressão gratuita”. Gratuita? Gratuita mesmo, de modo algum há como encontrar razão no que, enfim, ocorreu.
Tudo isso pode ser dito da seguinte maneira: em Hegel há uma “astúcia da razão” que, na sua versão popular religiosa poderia ser sintetizada assim: “Deus escreve certo por linhas tortas”. Em Schopenhauer, não há qualquer coisa como “astúcia da vontade”, pois a vontade nada tem a ver com Deus, ela é a desmedida e estúpida atividade do Diabo. Em termos populares e quase religiosos, ficaria assim: “O Diabo quis enfeitar tanto o olho do filho que o furou”.
Caso se quisesse fazer um resumo máximo do desempenho da rede de tramas dos personagens de Machado, poder-se-ia dizer o seguinte: não há vida previsível, só há, realmente, a vida. Nem mesmo a morte tem aura de certeza. Tudo está em aberto e, portanto, não espere que, “só para contrariar”, um babaca vire alguma coisa boa, pois pode ser que um babaca termine o conto ou o romance como sendo um babaca e tendo só feito babaquices. Chamado de ironista, na verdade Machado inventou o humor anti-irônico.
Hegel foi um ironista. A “astúcia da razão” é, na filosofia, o que a ironia é para a literatura. Por exemplo, Hegel chamou Napoleão de “a razão a cavalo” exatamente porque o general cumpriu, levando a barbárie da Revolução Francesa institucionalizada para quase toda a Europa, os ideais de civilização racional incrustados nos objetivos da Revolução. Criando prisões e mortes, Napoleão teria trazido mais liberdade. Eis aí, popularmente, a “ironia do destino” ou, em termos filosóficos, a “astúcia da razão”.
Ora, Machado jamais compactua com a “astúcia da razão”. Nenhuma razão subjaz ao cotidiano da vida. Ninguém é medíocre para, sendo medíocre, realizar a sabedoria. Ninguém é mau para, sendo mau, realizar da bondade. Ninguém é um canalha para, sendo canalha, fazer vencer a virtude. Em Machado, a linha espezinha a agulha[1] mostrando a ela que quem vai à frente é batedor, e quem vai atrás é rei. Depois, nos acontecimentos, a agulha é novamente espezinhada: a linha vai ao baile e agulha volta para a caixa. Também no que seria a “moral da história”, quem fica do lado da agulha em nada dá o troco, apenas se revela como mais um derrotado, diz que abriu muito caminho para outros usufruírem do lugar aberto. Mas, enfim, quem diz isso não está em condições de dizer muita coisa, pois é um professor de melancolia. Sabemos bem que a melancolia é uma doença da alma. Assim, ao final, não surge nenhum hegeliano Napoleão, nenhuma “razão a cavalo”. Sobra a um moribundo psicológico o desejo de falar algumas palavras a favor de uma possível virtude da agulha derrotada.
O leitor que fica esperando a salvação da mediocridade da agulha não encontra coisa alguma, mas, se ele próprio for um medíocre metido a humilde (como quase todo medíocre – para acentuar aí o tom machadiano), acabará por se identificar com o doente psicológico e, assim, terminará a leitura do conto como um professor de melancolia. Este é nada senão um doente a mais, todavia, crente de que houve um ensinamento moral no conto, ou seja, de que há no mundo gente aproveitadora, mas que estes são reconhecidos pelos virtuosos, os professores (de melancolia) que, os denunciando, fazem justiça. O leitor medíocre e o professor de melancolia se encontram, então, na pequenez de poderem ver uma razão na história: eles são os anões hegelianos que irão acreditar que o conto teve a sua finalidade: serviu para que, ao final, ficasse estampada a lição de humildade e de como o humilde pode denunciar o que seria o aproveitador.
Do fim ao começo a agulha leva suas lambadas. O leitor-agulha, por sua vez, também recebe sua dose, mas ainda assim achará que a moral da história é do professor (de melancolia), e que houve aí uma lição a ser aprendida. No entanto, para o leitor que não é agulha e tem perspicácia, o que ocorre é o que pode ser chamado de império do lado perverso – mas o lado perverso não impera porque há maldade no mundo e, sim, porque há maldade e bondade fluindo de modo completamente não organizável em um mundo que é um caos. Em um mundo que é um caos, os que tomam lambadas as tomam sem razão e, então, certamente afirmarão que o mundo é mal. De fato, para estes, o mundo é mal mesmo.
©2010 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
(1) “A agulha e a linha” é um conto curto de Machado de Assis.
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